Trem de pouso

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Em Paris é quase madrugada e os operadores do aeroporto Charles de Gaulle encontram no trem de pouso do Boeing 777, que partiu de Abidjan, um corpinho endurecido pelo gelo. Ele é uma criança negra, cerca de dez anos de idade.
 
O ano apenas começou, e a vida continua. Enquanto nos preocupamos em sonhar novas conquistas para os próximos 366 dias ( este ano é bissexto) e nos identificarmos com os votos de um ano de paz e prosperidade para todos; enquanto seguimos as tensões no Oriente Médio, África, e na nossa América Latina, muitos dramas se consomem na total escuridão dos holofotes midiáticos. Um desses foi o sonho de uma criança da Costa do Marfim que se transformou numa tragédia.

Ele morreu congelado na barriga de um avião onde se escondeu para chegar à Europa, mais precisamente à França. A ideia certamente do menino era: a Europa está longe, mas um avião pode encurtar a distância e me levar para além da miséria, das favelas, do deserto e do Mar Mediterrâneo. Provavelmente pensamentos que enchiam a mente do menino de somente dez anos, que chegou ao Aeroporto Internacional de Abidjan para procurar “uma ponte” para a Europa.

Um avião fornece o sonho de poder conquistar a segurança que parece não ter em casa. Talvez, segundo as primeiras reconstruções, com a cumplicidade de alguém que lhe permitiu passar pelos controles do aeroporto.

O som dos motores

Vestido com roupas leves, ele se aproximou de um Boeing 777 da Air France, partindo para Paris. Ele aconchega-se no trem de pouso da aeronave. É um espaço apertado, não aquecido e nem pressurizado. Depois, o som dos motores e o avião decola.

O Boeing sobe então para uma altitude de 10.000 metros e a temperatura cai para -50°C. Acima de 42 graus abaixo de zero, o corpo já não consegue regular a sua temperatura. O oxigênio é rapidamente consumido e nestas condições extremas a febre, o suor, as convulsões e os desmaios são processos inevitáveis e inexoráveis. Os últimos pensamentos da criança marfinense estão envoltos pelo frio, solidão e escuridão. Depois o seu corpo, agora sem vida, chega a França.

Em Paris é quase madrugada e os operadores do aeroporto Charles de Gaulle encontram no trem de pouso do Boeing 777, que partiu de Abidjan, um corpinho endurecido pelo gelo. Ele é uma criança negra, cerca de dez anos de idade. Um “passageiro irregular”, diz numa declaração a companhia aérea. O rosto não tem nome.

Esperanças traídas

As suas esperanças traídas são, em vez disso, comuns às de muitos jovens africanos que procuram um futuro diferente daquele que seus países podem oferecer.

O drama deste menino marfinense é um drama terrível da emigração que não pode deixar ninguém indiferente. Um drama que traz à memória o caso de  outros dois jovens guineenses que foram encontrados no trem de pouso de um avião que tinha chegado a Bruxelas. Também se falou muito deles porque foi encontrada uma carta pedindo à Europa para ter um futuro diferente, para poder estudar, trabalhar e ter uma vida normal como a vida que os jovens europeus tem. O drama de uma África esquecida nos seus dramas. Para muitos este continente é considerado apenas um problema. Em vez disso, é um grande recurso de jovens que olham para a Europa.

O nosso menino de 10 anos e os muitos jovens que perderam a sua vida em busca da realização de um sonho, queriam somente uma oportunidade de vida, um futuro que não encontraram em suas realidades. Talvez – com disse a Comunidade romana de Santo Egídio – já tenha passado o momento de todos nós fazermos um exame de consciência e compreender por que, numa condição – como a da Itália e de muitos outros países europeus onde há necessidade de força juvenil, dado o envelhecimento da população – as portas não são reabertas à imigração legal para trazer pessoas que também querem contribuir para o desenvolvimento e o crescimento na Europa.

Ajudá-los em casa

Sant’Egidio lançou um apelo aos governos africanos, porque muitas vezes também eles fecham os olhos àquilo que é uma tragédia para eles: a saída de pessoas dos seus países, um fenômeno que não é considerado como um problema mas, muitas vezes, como uma libertação.

O drama do nosso menino de 10 anos, que não tem nem mesmo que chore por ele, deve se traduzir em pensamentos concretos e clarividentes para o grande continente africano, tão explorado. “Ajudá-los em casa” não deve ser um slogan para parar o que se pensa ser uma invasão, inexistente, mas deve servir para abrir um diálogo, para ajudar os necessitados de uma forma concreta e urgente. Ajudá-los a sonhar dentro e fora de casa, e que um avião seja uma meio para fazer sonhar uma terra nova, e não o ambiente de uma morte na escuridão e no frio de um trem de pouso.

Silvonei José/Vatican News

 

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