Migalhas da mesa

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Há uma lógica perversa que rege o mundo, com suas dinâmicas e relacionamentos, produzindo para a maioria dos seres humanos uma realidade hostil, marcada pela exclusão social, por todo tipo de discriminação e pela corrupção – frutos da mesquinhez doentia em que a lógica hegemônica do dinheiro tudo preside. Essa insana supremacia adoece indivíduos e, por consequência, a sociedade. A todos mantêm reféns de procedimentos e silogismos revestidos da falsa roupagem de um suposto bem e do desenvolvimento, revelando a voracidade de tudo o que representa o mal. A inadiável mudança de rumos é desafio exigente, mas possível de ser superado: na lógica do amor encontra-se a força necessária para redirecionar o mundo. Incontestáveis são os sinais de que as configurações da lógica do amor operam o bem, fortalecem a justiça e conquistam a paz. Lição a ser aprendida e vivida.

Interpelante é a passagem do Evangelho de Lucas: “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e dava festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, ficava sentado no chão junto à porta do rico. Queria matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico, mas, em vez disso, os cães vinham lamber suas feridas.” As “migalhas que caem da mesa” são a comprovação do predomínio da lógica perversa, emoldurada pela arquitetura de promessas enganosas, fundamentadas até mesmo em decisões de instâncias com credibilidade para convencer que é bom, justo e necessário “viver de migalhas”.

A força perversa de se “viver de migalhas” configura o abominável status de considerar normal a discrepante distribuição de bens entre grupos da sociedade, o que só contribui para agravar o inadmissível e crescente abismo entre os que têm demais e os que vivem na miséria. Assim, o tecido da sociedade brasileira é contaminado por uma poluição moral e desumanizante que deve ser contestada: as riquezas culturais, tradições, história e religiosidade, particularmente a realidade socioambiental dadivosa desta nação, bens da criação de um povo, jamais devem servir para atender a interesses de famílias e de grupos, perpetuando a lógica perversa de se sobreviver com as “migalhas da mesa”.

Vive-se um verdadeiro desastre humanitário e ecológico que indica a perversidade também no tratamento do meio ambiente. É vergonhoso saber de propagandas e apresentação de metodologias de exploração do meio ambiente, com contrapartidas que tentam justificar o injustificável, e força para convencer quem vive das “migalhas da mesa”. Mas, sabe-se que no reverso das ofertas de vantagens sociais está oculto o lucro exorbitante, enquanto são alardeadas as poucas vantagens para o “bem de todos”. A fragilidade desse discurso sobressai ante à situação das contas públicas e da falta de condições desse Estado diamante para cuidar adequadamente de sua gente. Ao contrário da realidade atual, em que o meio ambiente é explorado vorazmente, esse Estado diamante, com sua história tricentenária, seria um jardim.

Entristece a constatação de que expedientes arcaicos e manipuladores, cinzentos, obscurecem mentes e acovardam os que estão, por dever de ofício, em linhas de frente. E até mesmo aqueles que deveriam ser estandartes de lucidez na correção de rumos estejam envolvidos por práticas de cooptação. O tratamento do meio ambiente, que reúne todos os bens da criação, não pode ter como ponto de partida a lógica do dinheiro. Sublinhadas as riquezas muitas que o constituem, não se justifica o conjunto maior da sociedade vivendo das “migalhas que caem da mesa”. Mas a sedutora força do dinheiro é avassaladora. Impede enxergar que a extração das riquezas naturais gera lucro e também prejuízos: compromete lençóis freáticos num tempo em que se anuncia a escassez de água, um veredito assombroso; provoca intoxicações, adoecendo e matando de modo similar a guerras, sem contar as criminosas tragédias que ceifam vidas. Prejuízos irreversíveis que não se pagam com pífios milhões tirados de avolumados bilhões, para resfriar o infernal aquecimento de consciências.

Em lugar de propagandas que convencem por sua articulada e ardilosa arquitetura, dos acordos que merecem revisões e ajustamentos de condutas, por não serem dogmas, mas estreitamentos de interpretações e juízos, é preciso uma aprendizagem civilizada do que é a ecologia integral. Contudo, superar essa lógica perversa de se viver e agradar com “migalhas que caem da mesa” exige humildade. Não a própria daquele que é o pai da mentira e do orgulho, mas a verdadeira humildade que convida todos a se assentarem na sala comum para refletir e partilhar ideias sobre as condições de vida e da sobrevivência de uma sociedade, com a honestidade de se avaliar modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Não sendo assim, com a sedução de ilusório desenvolvimento, o lado perverso de enriquecer poucos e manter satisfeitos a grande maioria “com migalhas” avoluma-se, impondo a autodestruição e o massacre na sociedade. O peso é sempre maior para os mais pobres, mas as consequências nefastas, cedo ou tarde, chegarão àqueles que amealharam riquezas, construindo muros mais altos, por terem mais, ao invés de aumentarem as suas mesas para a partilha.

Não se pode permitir que o dinheiro tenha tanto poder de sedução, a ponto de comprometer os ecossistemas e o uso sustentável dos bens da criação, depredando a capacidade regenerativa da natureza nos seus diversos setores e aspectos. Por isso mesmo, é necessária uma ecologia econômica, que leve a sério a proteção do meio ambiente como parte integrante do desenvolvimento. Não basta dizer que a depredação em sítios, a exemplo da Serra da Piedade, é responsabilidade de outros. É imprescindível incluir nesse processo a qualidade de metodologias colocadas sobre a mesa para que, em lugar de “migalhas”, caiam verdades e entendimentos honestos. Somente assim pode-se comprovar a intenção de não agredir e ferir o território sagrado do Santuário da Padroeira de Minas, com claro desrespeito e prejuízo para o coração deste Estado, por comprovada ganância.

O direito de serventia, de um tempo em que o Direito era outro, não isenta de se fazer o que é considerado justo e correto agora. Não se pode aceitar que interesses próprios se sobreponham a outros muito mais importantes, nesta história protagonizada pelos exploradores atuais. Respeitar o território sagrado e não depredar o meio ambiente, como está ocorrendo na Serra da Piedade, é o mínimo que se espera da lucidez judiciária e da postura ética-cidadã. Para que seja verídico o argumento de que se está apenas recuperando um vergonhoso passivo ambiental, é preciso que se prove isto, judicial e empresarialmente, e em sinal de respeito sair imediatamente do território sagrado. O Estado diamante não merece celebrar o ano jubilar de 60 anos da proclamação de Nossa Senhora da Piedade, Padroeira de Minas, no dia 31 de julho 2020, num Santuário de 252 anos de peregrinações na fé, com 220 carretas transitando diariamente em mais de 400 viagens, o que degrada o território pertencente ao povo. É o primeiro sinal das muitas e necessárias atitudes que poderão alicerçar uma ecologia integral, sob pena de se viver, todos, sem exceção, das “migalhas que caem da mesa”.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

 

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