Jesus ficou calado

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João – o discípulo amado – narra a paixão e a morte de Jesus, acentuando sete cenas que apresentam a nobreza e a realeza de Cristo. Realeza banhada de sangue e de dores – as dores e os sofrimentos da humanidade –, capaz de iluminar uma compreensão lúcida e interpelante, essencial ao ser humano.  A compreensão lúcida e interpelante possibilitada a cada pessoa a partir da realeza de Jesus é alcançada pela força dos diálogos narrados no Evangelho. Em uma das cenas, Jesus está diante de Pilatos, que O pergunta: “De onde és tu?’. Jesus fica calado, fazendo emergir um silêncio profundo e inquietante, que remete ao que ocorre na terra quando o Mestre exclama: “Está consumado” e, inclinando a cabeça, entrega o seu Espírito. Esse silêncio profundo é o único caminho para se alcançar a grandeza do mistério da paixão e morte de Jesus. Também para aprender a superar a avalanche de palavras que causam confusão e aumentam desentendimentos, alimentando mágoas que alicerçam inimizades e perseguições.

A força das palavras, pela ausência do silêncio, não tem conseguido patentear a grandeza sublime do amor maior, gerador de fraternidade e de reconciliações. A Sexta-feira da Paixão é dia da prática do silêncio, em reverência ao que pode ser fecundado de amor sincero e libertador no coração humano. Sabe-se que falas precedidas de silêncio têm força para gerar um amor que vence as palavras disseminadoras de confusão. Silenciar-se é recorrer ao deserto interior, com a sua força terapêutica, para curar as feridas da alma, fazer do próprio coração uma hospedaria de sentimentos nobres. E, assim, expulsar diariamente as revoltas que matam a fraternidade, geram mágoas que adoecem, espiritual e fisicamente, para acolher a nobreza da realeza de Cristo, cujo manto é perdão, acolhimento e reconciliação.

Osilêncio ensina a importância dos momentos de solidão para poder se recompor e cultivar uma sabedoria indispensável à participação místico-profética na transformação da sociedade no horizonte do Evangelho. Os que experimentam o silêncio, em profundidade, vencem o medo da solidão e desenvolvem a habilidade de falar sem cair nas superficialidades.  Estão mais protegidos da cegueira que faz muitos se convencerem, enganosamente, de que têm razão. A prática do silêncio, convite especial à humanidade neste dia da Paixão, é o único caminho para cada pessoa se renovar e, assim, contribuir com a renovação da humanidade, desmascarando “zonas de conforto” e mediocridades sedimentadas. Sem o silêncio perde-se a disciplina indispensável a uma vida espiritual e cidadã.

A disciplina do silêncio é indispensável para não se perder na prolixidade do mundo contemporâneo. É cada vez mais forte a ilusória necessidade de querer se mostrar sempre “dono da razão”, envolvendo-se em disputas para impor pontos de vista. Disputas sem sentido que somente levam à humanidade palavras nada edificantes. A consequência é justamente a ruptura de silêncios que sustentam o ser humano. É importante lembrar neste tempo das redes sociais e das sofisticadas tecnologias, indispensáveis, que o silêncio não pode ser descartado, pois, sem ele, a própria palavra perde força para construção de pontes, diálogos e reconciliação. Em um mundo prolixo, perdida a propriedade da palavra como criação e recriação, diz-se de tudo, sobre todas as coisas, e em lugar de entendimentos e aproximações, alimentam-se divisões, disputas e inimizades, acentuando os lados que se atacam e os indivíduos que privilegiam as tiranias.   

O grande silêncio da Sexta-feira da Paixão, pela contemplação do Crucificado, é oportunidade singular para aprender a se silenciar. A palavra boa e edificante nasce do silêncio, que permite a escuta de Deus e, consequentemente, dos pobres e sofredores. Aqueles que se silenciam, conseguem perceber o próprio silêncio de Deus – amor que fecunda e acalma. O grande silêncio da Sexta-feira da Paixão, contemplando a cruz de Cristo, trono do Rei, fecunde os corações para que todos se reconheçam peregrinos. Assim, seja dissipado todo orgulho e preconceito. Acenda o coração com um fogo interior, para que depois de se calar, seja possível expressar o que tem força de reconciliação, de cura e de configuração de um mundo futuro. Jesus ficou calado. Depois, de modo obediente e amoroso à vontade de seu pai, exclamou: “Está consumado!”. E abriu as portas do paraíso, garantiu a salvação para a humanidade.   

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte(MG)

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

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