Cidadania e poder

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O apreço pela cidadania define os rumos da sociedade, exigindo o compromisso com os gestos, as escolhas e, particularmente, com a honra à palavra dada. São atitudes que se alicerçam na verdade e no gosto pela transparência. Sem o sentido de cidadania, os funcionamentos da sociedade ficam comprometidos.  A justiça e a solidariedade não são alcançadas. Por isso, são necessários investimentos na educação e na adoção de práticas cotidianas que emoldurem a civilidade, condição para que dinâmicas mais racionais ordenem a vida social. A história do Brasil, com seus ilustres personagens, permite que se construa uma nação mais justa. Mas, antes, é preciso encontrar os mecanismos capazes de regenerar as muitas feridas da cidadania brasileira, agredida pela indiferença, privilégios e falta de altruísmo que impedem os líderes e os representantes do povo de enxergar além dos próprios interesses.

Em questão está o entendimento sobre o que é exercer o poder, pois na sociedade brasileira, o seu exercício se confronta com o caos, criado pelas condutas condenáveis.  O poder não pode ser regido apenas pela economia de mercado com seus equívocos, afetando vidas de forma inconsequente. Sua regência deve ocorrer a partir da política, compreendida como a prática mais adequada do exercício da cidadania. O apóstolo Paulo já advertia que o dinheiro é a raiz de todos os males. Ao tomar o lugar da cidadania no exercício do poder, a economia arquiteta mecanismos que facilmente podem se distanciar da justiça e da solidariedade.  A dimensão econômica é importante na configuração social, mas as consequências são sérias quando o poder deixa de ser exercido a partir da cidadania para tornar-se submisso ao mercado. Os representantes do povo passam a obedecer e a reger-se por interesses que estão, quase sempre, desvinculados dos anseios da população. Afinal, quem tem dinheiro passa a ser o dono do poder.

Urge, então, investir na cidadania para que seu tecido resista à sedução do consumismo e da ganância, que determinam as decisões políticas. Desconsiderar essa urgência é manter práticas distantes dos parâmetros humanitários balizadores da justiça e da paz. Interesses particulares continuarão a se sobrepor aos anseios cidadãos, consolidando a supremacia do lucro e do mercado sobre o bem comum. Cultiva-se, assim, a incapacidade de priorizar as necessidades dos mais pobres, o que faz crescer a discriminação e a marginalidade.  Reconstruir o país exige, pois, que a comunidade política esteja a serviço do povo e não do mercado. Os políticos precisam se reconhecer como parte da sociedade, sem traí-la pela submissão ao dinheiro.

Isso significa, no conjunto do pluralismo social, ser fiel aos princípios da solidariedade e da justiça. A sociedade tem primazia, e esse deve ser o horizonte para o compromisso de uma genuína cidadania. O serviço autêntico que a comunidade política é chamada a prestar à sociedade não pode se afastar jamais do compromisso com o desenvolvimento integral e solidário. As consequências desse distanciamento resultam em prejuízos irreversíveis – a anomia, a violência e as vergonhosas desigualdades.

Para transformar o atual contexto, precisa florescer, em cada pessoa, a consciência da própria responsabilidade nos exercícios das tarefas profissionais, políticas e de cooperação. Para isso, oportuno é se valer das próprias raízes, de modo reverente, reconhecendo o arcabouço cultural da própria história e a trajetória dos antepassados. Esse patrimônio deve ser vetor de desenvolvimento.

A mediocridade atual e os condenáveis interesses não podem apequenar o exercício da cidadania, que lamentavelmente se revela, por exemplo, no excesso de burocratização que atrasa processos, manifestando certo prazer patológico de alguns que precisam mostrar poder.  Atitudes que criam uma geração incapaz de deixar legados e até corroem o que já se conquistou. Por isso, a necessidade de um grande trabalho educativo e cultural que impulsione transformações na vida cidadã. E o passo primeiro é não delegar poder absoluto ao mercado. A economia deve estar sob domínio das necessidades humanas, o que inclui equilíbrio e vida ordenada nos parâmetros da cidadania. Assim, torna-se possível ampliar o alcance da compreensão de que é nobre ser cidadão. Nobreza por comprometer-se com o bem comum, priorizar o respeito e a defesa da dignidade humana, em todas as circunstâncias. A sociedade ganha novo rumo quando a cidadania regula o exercício do poder.

 

Autor:Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

 

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