A dolorosa visão de cenários desfigurados e perversos na sociedade contemporânea faz brotar forte indagação: há triunfo das nulidades? Pode parecer uma perspectiva dramática ou pessimista, mas é real. Não é exagero constatar que esse triunfo, lamentavelmente, está em curso. Considerar, cotidianamente, os desatinos que ameaçam a humanidade e a conduzem, com velocidade, rumo a precipícios, é uma urgência. Afinal, muitas vezes não é possível retornar do fundo do abismo, ou é necessário longo prazo para a recuperação. Ao mesmo tempo, as urgências humanitárias e civilizatórias exigem respostas imediatas. Não se pode mais suportar pesos, sofrimentos e descompassos que atingem frontalmente o bem comum e ferem a humanidade. Por isso mesmo, é preciso mais cuidado e responsabilidade para mudar essa realidade, o que exige dos cidadãos e cidadãs a remodelação de atitudes – de hábitos domésticos até decisões em instâncias que impactam os muitos processos da vida.
Vê-se o crescimento da indiferença, acompanhado de descuido proposital e perverso na vivência de valores, no respeito a princípios, o que torna as pessoas potenciais avalanches demolidoras, umas passando por cima das outras. O resultado: a devastação moral, física e humanitária com altos preços a pagar. Diante disso, é cada vez mais atual a expressão iluminada de Rui Barbosa, ainda no início do século passado, com força de repreensão, ao dizer que se tinha vergonha de ser honesto, de tanto ver triunfar as nulidades, prosperar a desonra, o crescimento da injustiça, com o agigantar-se dos poderes nas mãos dos maus. Assombra, hoje, a naturalidade com que o mal é aceito, destruindo, sorrateiramente, o indispensável humanismo e a envergadura moral necessária ao exercício de responsabilidades.
Todos os processos da vida pessoal, familiar, profissional, religiosa e cidadã estão contaminados pela banalização do mal. Para além da abordagem filosófica – se o mal é dotado de um ser – considera-se que o pensamento moderno questiona a sua existência. Também por isso, a humanidade paga na própria pele os seus efeitos desastrosos. O mal faz troças da racionalidade humana que, sozinha, não consegue enfrentá-lo e reverter quadros, mudar situações e requalificar indivíduos. Mais que um problema, o mal é um mistério a ser afrontado, com humildade e atenção, para, especialmente, o ser humano não se tornar agente da maldade e seguir na direção oposta à condição de cada pessoa: a dignidade maior de ser filho e filha de Deus – que é bom, porque é amor.
As diferentes corrupções que enlameiam a sociedade têm suas raízes no mal. Sua perigosa banalização vai ganhando, avassaladoramente, a regência da vida. Com isso, o mal passa a definir as dinâmicas da sociedade, com força de convencimento, para fazer, por exemplo, que se considere verdade o que é mentira. Narrativas do Evangelho a respeito da tentação sofrida por Jesus no deserto sublinham a fragilidade da condição humana e apontam o caminho experiencial de sua superação. Essa perspectiva merece atenção de toda sociedade para, seguindo o exemplo de Jesus, se debelar o crescimento assustador do poderio do mal. Ao ser desconsiderado, o mal se apresenta como única alternativa, desvirtuando a verdade e o amor, comprometendo a paz social e a justiça. A força do mal é tão incidente que perverte até mesmo religiosos, distanciando-os da conduta esperada dos que professam a fé. Quem crê, autenticamente, pauta a própria vida, seus atos e momentos na verdade e no amor, desdobrados em solidariedade fraterna e em testemunho de uma realidade que ultrapassa o tempo, o espaço e as ideias – o Reino de Deus. Vive, neste tempo, o sonho e a luta para efetivar as lógicas do bem.
Por onde caminhará, com a banalização do mal, a defesa da justiça? Os argumentos advocatícios passam a ser tarefa irracional, com agressividade e até sem o mínimo senso de civilidade. Permite-se defender o indefensável, fazer valer a mentira como verdade. A força do mal seduz os operadores da sociedade, nos seus diversos campos de ação e produção. Faz valer a lógica da ganância e do lucro, com justificativas que comprovam o poder do mal. As instituições ficam à mercê de interesses espúrios, seus atores e responsáveis, incapacitados.
O tecido humanístico, carcomido pelo mal, fortalece lógicas que negam a preciosidade do dom da vida. E a cidadania sofre, pois se vê privada da qualidade indispensável de urbanidade. Cada um se reveste de uma condição voraz e, permitindo-se passar por cima de tudo e de todos, provoca o caos social e político. A sociedade está desafiada a combater a forma como tem assimilado o mal, a lutar por investimentos ético-morais em princípios e valores, por práticas que amansem o coração humano. Assim, será alcançada a competência exigida neste momento da história, único caminho para se conter, com urgência, o triunfo de nulidades.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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