O Papa Francisco, ao compartilhar seus quatro sonhos – social, cultural, ecológico e eclesial -, convida todos – Igreja e sociedade – a sonharem juntos, embora haja quem permaneça entrincheirado nas resistências. Alguns fazem parte da Igreja, sem se dar conta da viragem civilizatória que está ocorrendo em todo o mundo. Dentro dessas transformações em curso uma situação é preocupante: o fenômeno de um cristianismo torto, que se expande e se mistura com projetos políticos de poder, numa perigosa simbiose de interesses político-partidários, que envolve discursos e práticas mais ligados às manipulações do que à espiritualidade capaz de gerar mudanças a partir dos valores do Evangelho. Todo esse fenômeno religioso-cultural, no Brasil, é emoldurado e alimentado pela condição viciada da política, suas instituições enfraquecidas, suas lideranças incapazes de sinalizar e encontrar novos rumos. Nesse descompasso se inscreve a pouca maturidade político-civilizatória da sociedade brasileira que, facilmente, trata líderes políticos como se fossem ídolos do mundo do esporte.
O convite aos quatro sonhos do Papa Francisco é um remédio – jamais uma alienação e menos ainda uma iconoclastia, na contramão de princípios irrenunciáveis da rica tradição da Igreja Católica que tem marcado mundo afora, de modo positivo, há mais de dois mil anos, diferentes culturas, a partir de um diálogo que merece reverências e reconhecimentos. São incontestáveis a força e a riqueza da tradição cristã-católica na confecção do tecido cultural brasileiro. Tecido que sofre, na contemporaneidade, com a perda de suas raízes e, consequentemente, corre o risco de um colapso, provocado por efervescências religiosas que parecem portar a bandeira do cristianismo, mas se misturam com projeto de poder político. Uma realidade que requer posicionamentos assertivos, incidentes. E o convite a sonhar, feito pelo Papa Francisco, na sua Exortação depois do Sínodo da Amazônia, “Querida Amazônia”, é indicação sábia e luminosa desse caminho que precisa ser percorrido. Sem trilhá-lo, poderá se chegar a uma situação irreversível de prejuízos, manipulações e tortuosidade religiosa.
As resistências que atingem as instâncias da Igreja, particular e injustamente ao Papa Francisco, é “fogo amigo”, uma condição kamikaze dos que se dedicam aos ataques, por não perceberem que caminham na direção da derrota. Com os balizamentos preciosos dos quatro sonhos do Papa Francisco, a sociedade brasileira precisa de uma contrarreação profética, qualificada e com força para reverter suas muitas situações preocupantes. O momento exige o cultivo do sentido de pertença para que, internamente, se corrija o que precisa ser reparado, livrando-se de estreitamentos próprios dos que se dedicam a agir como inimigos. Assim a sociedade brasileira pode ser salva das garras de um cristianismo tomado como prática religiosa obscurantista, atentado contra o patrimônio cultural, alinhado a interesses que buscam se disfarçar com a linguagem de milagre e de aceitação da pessoa de Jesus Cristo. A distância dos mais pobres, a falta de garra na luta pela transformação social e política, a carência de autenticidade no exercício de desempenhos comprovam que esses interesses se apropriam da fé apenas para se camuflar.
Não é, absolutamente, hora de praticar resistências demolidoras internas figadais, injustas e comprovadamente por interpretações de fatos e atos a partir de critérios distanciados do Evangelho. Da Igreja Católica, requer-se uma contrarreação cristã, não por se impressionar com porcentagens estatísticas, mas em razão da fidelidade à vivência autêntica do Evangelho de Jesus Cristo, para promover a vida – dom frequentemente negociado por quem desconsidera o seu real valor – e pela consciente tarefa de não deixar a nação sucumbir-se na mistura entre religiosidade e política, interesses de poder em contraposição ao bem comum.
A sociedade brasileira está enterrada numa intrincada complexidade, agravada pelas colisões, pelo esvaziamento de uma diplomacia assentada em valores humanísticos. Isso atrasa e inviabiliza o encontro de respostas para os problemas atuais. Assiste-se a uma ameaçadora adesão aos interesses que colidem com o sonho social do Papa Francisco, o que retarda mais o surgimento de uma economia capaz de combater exclusões sociais perversas, eliminar dinâmicas consumistas e imediatistas que esfacelam as raízes culturais. Vencer resistências à aprendizagem das lições da Ecologia Integral é o único caminho para se conquistar a justiça.
O sonho eclesial do Papa Francisco não pode se tornar razão de resistências, pouco inteligentes. Urgente é encontrar caminhos novos, a partir das indicações do Papa e do comprometido empenho de todos os cristãos católicos, com a força da Palavra de Deus, com a rica tradição da Igreja e suas práticas milenares, convincentes, dedicadas à caridade, incluindo o investimento na sua rede de comunidades. De maneira profética, é possível contribuir para livrar a sociedade brasileira de maiores e deletérios fracassos políticos, para conduzir o País rumo à novidade que todos almejam, com a luminosidade do que é antigo, mas, ao mesmo tempo, sempre novo: a fé cristã católica. Em lugar das resistências, desdobradas em ataques, todos devem sonhar, remédio para curar, transformar e edificar uma sociedade justa e solidária – buscar um genuíno compromisso com o anúncio do Reino de Deus.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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