Um amigo escritor responde a esta pergunta, de modo magistral e com propriedade, com força para incomodar qualquer coração sensível. Ele diz: “É por dentro das coisas que as coisas são. O mergulhador abre os olhos dentro do mar. O alpinista abre os olhos não além da montanha, mas dentro dela, partindo dela. Os viajantes modernos atravessam o interior das nuvens. É por dentro que as coisas se revelam. O orante abre os olhos dentro de Deus”. É preciso abrir os olhos. Olhos fechados não permitem ver o que é preciso e, assim, produzem indiferenças responsáveis por comprometimentos de pequenas e grandes coisas. Comprometimentos da palavra dada e não cumprida até às indiferenças que ameaçam a paz em todos os níveis.
É preciso ver por dentro. Não vendo por dentro ocorrem os descompassos e prejuízos, inclusive para ofícios sacerdotais. Profissões e vocações que se pautam nos parâmetros do sacerdócio requerem uma qualificação ainda mais aprofundada, especialmente nas perspectivas humanística e espiritual. Afinal, a medida de todo sacerdócio é sempre grande e exige, sem dispensas, sob pena de desqualificação, a competência de olhar dentro do outro a quem se serve. Há uma medida comum de todo sacerdócio, consideradas as diferenças de contextos e circunstâncias. Essa medida é o serviço dedicado ao próximo e à comunidade. Servir não se restringe a um simples desempenho maquinal. Bem mais que isso, é o atendimento das necessidades reais do próximo – a quem se dedica o serviço.
Não há referência sacerdotal mais perfeita que a de Jesus. Seu sacerdócio é uma oferta magnificamente inquestionável. Vai além da materialidade. Constitui um modo de ser com força restauradora. O sacerdócio de Cristo é, pois, modelar, inigualável, pelo sentido real da oferta que o Mestre faz de si mesmo. Jesus derrama seu sangue redentor na cruz, entrega a sua própria vida, incondicionalmente, tornando-se fonte inesgotável para o resgate total de muitos. É inspiração para toda vivência sacerdotal, isto é, para a oferta de si. A referência sacerdotal de Cristo, aplicada ao conjunto dos serviços dedicados à construção de uma sociedade solidária, de um novo tempo, nos parâmetros do desenvolvimento integral, proveria grandes e urgidas mudanças, configurando recomposições e significativas conquistas civilizacionais.
De fato, não há outra saída para capacitar mentes e corações no tratamento da vida como dom precioso. Tradicionalmente, a referência ao sacerdócio remete aos exercícios sacerdotais no interno da confissão religiosa. Mas também se refere ao exercício da medicina. Ouve-se, constantemente: “a medicina é um sacerdócio”. Não poderia ser diferente, por exigir padrões de comportamentos e posturas que devem emoldurar os diagnósticos técnicos, que são importantes, mas se repetidos – roboticamente – levariam a situações lamentáveis. Um antecipado veredito de morte, por exemplo, poderia significar menos cuidados com o paciente. O simples cumprimento burocrático de um ritualismo sacerdotal é, assim, incompetência comprovada na tarefa de abrir os olhos. É uma incapacidade para ir além do rito, diante da dor de quem se deve servir, dos brotos de suas esperanças, respeitando, de modo reverente, as suas histórias.
O verdadeiro sacerdócio requer forro humanístico e espiritual. Vai muito além das competências conceituais e técnicas conquistadas, das facilidades oferecidas pelas máquinas e por receituários “pré-fabricados”, do desempenho maquinal de ritos sem alma e sem força de interpelação, como reclamam fiéis. Sem o revestimento humanístico e espiritual não se tem força para recuperar a vida. Ao contrário. Mata-se mais depressa e as palavras não falam ao coração. Isto porque, no lugar certo e para quem é devido, não se abrem os olhos. Para outros interesses e outras situações, menos importantes, é que, frequentemente, são abertos.
A sociedade não encontrará novo equilíbrio apenas com o aquecimento da economia, nem somente com acertadas reformas. Sobretudo, espera-se que os cidadãos sejam capazes de acertar o lugar onde devem abrir os olhos: o sacerdócio, seja na confissão religiosa, seja no âmbito da saúde, na dor dos pobres e enfermos, dos sofredores e aflitos. Do contrário, serão eficientes na “fala”, no manuseio de máquinas e ritos, mas não terão força de resgate e restauração. E portas serão fechadas aos milagres da vida por não haver acerto sobre onde se abrem os olhos.
Foto:Divulgação
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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