“Essa contribuição pede um coração discipular, pois os desafios humanos, espirituais e políticos são enormes”
Hoje, Sexta-feira da Paixão, é dia de grande silêncio. Silêncio que remete ao momento amoroso da criação: a mão de Deus faz sair do caos da escuridão e do vazio a beleza e a expressão maior do seu amor. Agora, esta mesma criação está envolta pela celebração litúrgica da Sexta-Feira Santa, em um grande silêncio. Silêncio que reafirma a certeza de ver brotar o amor renovador e recriador, salvador e redentor, da paixão e morte de Jesus, fecundando a sua ressurreição, por sua oferta obediente à vontade de seu Pai – dom maior de viver por amor e no amor. Este grande silêncio de Deus, ecoado do alto da cruz, com o grito de que tudo está consumado, proclama a vitória da vida sobre a morte. É o brilho de uma luz esperançosa no horizonte da humanidade, ferida pelo pecado.
O silêncio amoroso de Deus, ao entrar no mistério sempre doloroso da morte, fecunda a vitória da vida. Este silêncio desafia o coração humano ao esforço de exercitar qualificada escuta, pois há uma lição especial a ser aprendida, um caminho novo a ser percorrido e uma nova conduta a ser adotada. O desafio é substituir vozes pelo silêncio, falas por uma atenta escuta, julgamentos pela acolhida de lições e por uma qualificada contemplação. A garantia da vitória do crucificado-ressuscitado é convite à conquista de um coração discipular. Desde o nascedouro das primeiras comunidades cristãs, a narração da paixão e morte do Senhor motiva o propósito de alimentar o coração dos discípulos e discípulas com a força do amor maior.
Assim, hoje é dia de qualificar, pela singularidade deste profundo silêncio, o coração discipular de todos. Essa qualificação é essencial à grande demanda por um novo modelo civilizatório, alicerçado na competência humana e espiritual de construir relações marcadas pela fraternidade universal, um novo estilo de vida na Casa Comum e a inegociável experiência de uma autêntica fé místico-profética, alavanca deste novo tempo esperado e tão querido. A grande contribuição dos cidadãos e cidadãs do Reino de Deus, cujas portas estão escancaradas pela vitória da ressurreição, conta decisivamente. Essa contribuição pede um coração discipular, pois os desafios humanos, espirituais e políticos são enormes.
Silenciar-se para conquistar um coração discipular é tarefa exigente e dom indispensável. Enquanto dom, aponta para a razão maior do sentido da vida humana, alcançada em Deus, desdobrando-se em gestos e palavras que são expressão da solidariedade. Enquanto tarefa, relaciona-se ao compromisso de tecer narrativas capazes de promover mais lucidez na busca pela solução de problemas, na construção de entendimentos e de novas formas organizacionais, qualificando a sociedade, enquanto se avança no percurso a caminho do Reino de Deus. Seja assumido o desafio existencial e espiritual de fazer-se coração discipular, buscando seguir Jesus – corajosamente mergulhar no mistério da sua paixão e morte.
Busque-se, como diz o profeta Isaías, a abertura dos ouvidos, a cada manhã, para livrar-se de rebeldias e de covardias. A condição discipular é reconhecida também, conforme diz o profeta, naqueles que foram agraciados com a língua de discípulo, capazes de ajudar os que estão cansados. Percebe-se que um coração discipular é capaz de dedicar-se à escuta amorosa, sabendo reconhecer o próprio lugar nas narrativas da paixão e morte de Jesus, apresentadas em quatro versões – Mateus, Marcos, Lucas e João -, com interpelações fortes e inspiradoras.
O desafio é contribuir para melhorar a vida de um povo, ajudando-o a se render à compaixão, a reconhecer a sacralidade da vida de todos, cada um é dom precioso de Deus. Não basta, pois, ser simplesmente um mediador de conflitos ou de situações inerentes ao exercício do poder, seguindo as atitudes de Pilatos, com escolhas que efetivam a injustiça, os entendimentos equivocados, raivosos e vingativos. O coração discipular também está na contramão de uma curiosidade similar à de Herodes que, instigado por informações, exige ser saciado pela novidade de um milagre. Ao não ser atendido, escorrega na direção perigosa da indiferença. Ainda: o coração do discípulo é incapaz de escolher mal, elevando Barrabás e condenando Jesus. Nem mesmo basta aceitar ser um Cirineu, que participou do mistério da Paixão e Morte sob a pressão de uma obrigação imposta.
Arriscada é a posição dos que se arvoram na condição de juízes, assentados em convicções religiosas ou em critérios que somente levam a sentenças injustas. O coração discipular se exercita na especial atenção às cenas que se desdobram, aos fatos que se sucedem à Paixão do Senhor, particularmente com o olhar fixo na figura central da narrativa, Cristo Jesus, de modo semelhante ao que fez o Oficial Romano. Ele alcançou a sábia convicção que muda corações ao exclamar: “Verdadeiramente este homem é o Filho de Deus!” Uma exclamação que aponta a conjunção lúcida da razão e dos sentimentos.
A exemplaridade do coração discipular se patenteia na presença da Mãe dolorosa, acompanhada de outras mulheres, alimentada por um silêncio contemplativo, fortalecendo a experiência de sua fé, sem expressar ira ou desespero. Maria reconheceu a luminosidade da vitória da vida, por ver o invisível e encontrar nos rastros da dor e dos sofrimentos a doçura inesgotável do amor de Deus, que se desdobra em amor fraterno. Hoje, Sexta-feira Santa, no profundo silêncio, em comunidade, em família, na ação litúrgica e no íntimo do próprio coração, é oportunidade celebrativa e meditativa de abrir os ouvidos para a narração da paixão e morte de Jesus. Assim, tecer o próprio coração discipular e fecundá-lo sempre com a alegria duradoura e vitoriosa do Crucificado-Ressuscitado – cura e salvação para a humanidade.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte – MG e Presidente da CNBB
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