O caminho da Quaresma há de ser sempre compreendido como delicadeza de Deus ofertada a todos, experimentada pela beleza encantadora da Liturgia da Igreja. São luzes brilhantes que se acendem pela escuta da Palavra: a Palavra de Deus ilumina e alcança as profundezas ensombradas do coração humano, distanciadas do Criador. O caminho de conversão é o retorno a um amor maior perdido e substituído por práticas que desfiguram a condição humana na sua semelhança com Deus. Percorrer esse caminho, com abertura à ação da graça redentora, é acolher o desafio de iluminar a realidade humana e social despertando o compromisso de ajudar na construção de um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário.
A medida certa da nova condição espiritual e humanística que se consegue alcançar pelas práticas quaresmais projeta luzes na realidade, inquietando a cidadania do Reino, que deve estar em sinergia com o adequado exercício da cidadania civil. Por isso mesmo, a Igreja Católica convida todos para se deixarem encharcar pelas interpelações espirituais que são base de um humanismo integral. Neste tempo da Quaresma, esse convite é oferecido a cada um a partir da Campanha da Fraternidade 2023 – Fraternidade e fome. A profundidade da interpelação espiritual impulsiona a conduta cidadã ao compromisso de ouvir os clamores dos sofredores. Comprometer-se com a promoção do bem maior que está ao alcance de todos. Assim, enxergar com lucidez os problemas sociais é consequência e comprovação de um fecundo processo de conversão, que ultrapassa uma simples conquista pessoal, individual.
A Quaresma tem como finalidade não somente a expiação, mas também a tarefa discipular de alargar o próprio coração – fazer dele lugar da alegria experimentada no amor verdadeiro. Esse amor verdadeiro, quando reveste o coração humano, lhe confere força. Impulsiona-o para testemunhar o Evangelho com autenticidade, dedicando-se à construção de um mundo melhor, enquanto se caminha para o Reino definitivo. A alegria que fortalece o coração brota do dom da misericórdia, recebido quando o ser humano se dedica à promoção da justiça e da fraternidade universal. A misericórdia fecunda uma santa indignação diante das injustiças e afrontas à sacralidade da dignidade humana. Existe, pois, uma conexão forte entre a dimensão misericordiosa do coração humano e o compromisso com o bem de toda a sociedade. Trata-se de uma iluminação que permite enxergar os descompassos da realidade e, por amor, sincero, verdadeiro, engajar-se na superação de muitos problemas.
O horizonte sólido e inspirador do caminho quaresmal é intocável. Sua luz forte permite alcançar o peso da realidade que se impõe, especialmente, aos pobres. Enxergar com clareza a situação dos pobres, pelos olhos da fé, com o coração encharcado de compaixão, faz nascer o compromisso quaresmal de compartilhar o necessário pelo bem de quem carrega fardos pesados. Muitos são os fardos pesados esmagando irmãos e irmãs, a exemplo do drama da fome e da insegurança alimentar. Tomar a luz brilhante do caminho quaresmal para iluminar descompassos sociais é enxergar a dureza da realidade com as singularidades da fé, alavancando a conversão. Não cabe, pois, o equivocado entendimento que aponta haver contradição entre o insubstituível horizonte do caminho quaresmal e o apelo para que, pela ótica quaresmal, se consiga reconhecer descompassos da realidade, como o drama da fome.
A promoção da Campanha da Fraternidade – neste ano com o tema Fraternidade e fome – não é uma proposta de substituição à vivência da Quaresma. Do tempo quaresmal, luz divina que se configura como convite à conversão, se arquiteta a iluminação para uma completa visão da realidade, pela ótica da compaixão. Essa visão convoca a um compromisso social fecundado pela fé. Duas passagens bíblicas são iluminadoras e têm força para diluir qualquer tipo de dúvida a respeito da íntima relação existente entre a fé autêntica e a solidariedade. Jesus, na sua maestria, apresenta o samaritano que agiu com extrema misericórdia na acolhida e tratamento daquele que tinha sido vítima de assalto. O Mestre compara a exemplaridade inspiradora do samaritano com a lamentável indiferença do sacerdote e do levita, que passaram adiante sem se compadecerem. Ainda nos seus preciosos ensinamentos sobre a misericórdia, o Mestre e Senhor afirma: “Tudo o que for feito ao menor dos irmãos é a mim que se está fazendo”.
Reconheça-se, pois, o desafio de se compreender que o compromisso cidadão de superar a miséria e a fome envolve os discípulos e discípulas de Jesus, uma exigência da fé autenticamente vivida. O selo de autenticidade da fé cristã amalgama a compreensão da realidade social na sua dureza e peso. E quem compreende a realidade, é interpelado a agir, um compromisso quaresmal, fruto de conversão. Não se pode cair no equívoco de opor Quaresma e Campanha da Fraternidade. A luz e a força da fé têm propriedades para promover a experiência da autêntica conversão, atuando pelo bem maior como compromisso quaresmal. A fé cristã permite ver o invisível – por graça de Deus – e permite adequadamente enxergar a realidade: reconhecer seus descompassos, inspirando a superação de equívocos. A realidade precisa ser tocada pelo sabor do Evangelho de Jesus Cristo. Pautar-se por preconceitos ou desconhecer a realidade sofrida de quem não tem o que comer, julgando equivocadamente a relação entre fé e compromisso social, é impedir o florescer de respostas possíveis de serem encontradas no horizonte da delicadeza de Deus, o tempo quaresmal.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte(MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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