O olhar sobre a sociedade e seus muitos territórios específicos precisa, neste momento, ser iluminado pela luz da audácia de recomeçar. As devastadoras chuvas desse janeiro de 2020, causando mortes e perdas materiais, enlutando precocemente as famílias, comprometendo infraestruturas, são consequências de uma natureza enfurecida pelo tratamento impiedoso recebido daqueles que deveriam ser os guardiões da Casa Comum. As vidas perdidas são o clamor surdo e interpelante dirigidos especialmente aos que governam: é preciso ser audacioso e recomeçar.
No horizonte interpelante delineado e indicado pela Ecologia Integral, a audácia do recomeço requer a iluminação de que o primeiro passo deve ser a aceitação e a humildade para reconhecer as evidentes lições a serem aprendidas. Não bastam ações paliativas. É indispensável ser audacioso nas concepções, nos gestos, e ter competência para discernir a respeito de prioridades e investimentos.
O tamanho do desafio é imensurável e a oportunidade de se inaugurar um novo tempo é única. Requer magnanimidade, almas distanciadas dos moldes apequenados que se evidenciam nos gestos, nos pronunciamentos e nas soluções propostas ante as dificuldades e atrasos que se arrastam nas muitas realidades da sociedade brasileira, em que os pobres pagam a maior parte da conta. Enquanto isso, a penúria é justificada pela falta de recursos que, de fato, tornam-se minguados também pela incompetência na gestão e estreitezas na escolha de prioridades.
O ponto de partida para quem vive uma cidadania qualificada precisa ser a vergonha de tudo o que se refere às condições inumanas e perigosas impostas aos mais pobres. As catástrofes e as perdas precisam agora do antídoto, que deve brotar célere e incidente na audácia do indispensável recomeço. Não cabem paliativos. Requer-se abertura à iluminação advinda das interpelações da Ecologia Integral, que reclama ordem e dinâmicas econômicas diferentes das atuais, responsáveis pelo descompasso na igualdade, que é direito de todo cidadão.
Uma nova inteligência na gestão, particularmente governamental, exige a consideração articulada entre compreensão ecológica e infraestrutura: é preciso considerar o conjunto dos elementos envolvendo as pessoas, as condições e circunstâncias da Casa Comum, ou seja, tudo o que diz respeito aos funcionamentos da sociedade. A responsabilidade primeira dos governos não pode ser exercida exclusivamente pelo norte do viés político, menos ainda, partidário. Aponta-se na direção de fóruns permanentes, em que tomam assento arquitetos, urbanistas, economistas, para uma nova ordem justa e solidária, no horizonte da Economia de Francisco. Ambientalistas e detentores de uma compreensão sobre a “escada de humanismo” se mobilizam para formatar projetos e ações com força para interferir favoravelmente na realidade, com mudanças radicais, a partir da implantação de novas estruturas com arrojadas e corajosas propostas – evidências com práticas consolidadas em outras nações.
Dentre os segmentos que requerem essas necessárias e urgentes intervenções, um exemplo emblemático é a extração do minério que não pode continuar utilizando processos ultrapassados, nem mesmo para justificar a geração de empregos e renda, pois beneficiam temporariamente parcela ínfima da população, enquanto os prejuízos decorrentes dessa atividade atingem o conjunto da sociedade. O tema da água, primordial – desde a ocorrência das chuvas torrenciais desastrosas, ao consumo humano de água potável – é vigoroso neste debate, capaz de pautar a audácia de se recomeçar. É inadiável pensar-se um projeto – independentemente dos altos custos que possa significar-, que acabe com o uso criminado de rios, riachos e córregos usados como esgoto, a exemplo do rio das Velhas que polui o rio São Francisco com os mais abomináveis rejeitos produzidos na Capital mineira.
A audácia de recomeçar – como resultado de lições aprendidas, considerados os crimes e descompassos ambientais – não perdoará governantes e construtores da sociedade que não se empenharem na escuta dos especialistas para encontrar novos modos de sustentabilidade, a partir de intervenções urbanísticas adequadas, particularmente nos âmbitos da política habitacional, da recuperação dos rios – o rio Arrudas , em Belo Horizonte, pode se tornar limpo e, quem sabe, até navegável em alguns trechos, seguindo a mesma trilha de outros grandes centros urbanos.
Sem a compreensão dos recursos e das dinâmicas no horizonte da ecologia integral, em que todos, sem exceção, são aprendizes, aliados da visão técnica de urbanistas e arquitetos, as cidades e regiões metropolitanas caminharão resvalando na direção do caos, arriscando-se ao esgotamento das possibilidades de solução. A urgência deste momento singular aponta para a importância dos conhecimentos técnicos. Não aqueles engessados pela burocracia ou pela ignorância de exercer o poder, atrasando processos, mas o que constrói equipamentos sustentáveis, com rapidez inusitada para instalar novo tempo como, agora, é requerido. Do cidadão ao governante mais responsabilizado, o que se exige, sob pena de se arcar com um prejuízo ainda maior, é a tarefa insubstituível de adotar novas propostas, novos hábitos e práticas, novas estruturas – a comprovada audácia de recomeçar.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte(MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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