Primazia do servir

, Artigos

A primazia do servir é um basilar princípio do Evangelho, indicado pela maestria de Jesus aos seus discípulos. Conhecedor, como só Deus conhece as idiossincrasias do coração humano, o Mestre sabe que no reverso deste princípio, regra de ouro para a qualidade do viver humano, contracena o espectro do poder, como sedução e ambição. Veneno que atua com fortíssima propriedade destrutiva, o poder descompassa as relações, impondo limites e prejuízos pesados ao tecido social e político no conjunto de uma sociedade. A imaturidade na condição humana, assim como as crescentes manipulações institucionais maculam a ordem do serviço prestado e podem restringir a aplicação de habilidades e aptidões somente ao atendimento de interesses partidários e de grupos comprometendo o sentido mais amplo da primazia do servir – garantia de solidariedades e igualdade. Assim, o serviço prestado no desempenho profissional ou gracioso se emoldura por interesses mesquinhos com alcance restritivo, alimentando desigualdades sociais, preconceitos e discriminações.

Jesus Mestre trata esta patologia presente em seus discípulos. E tudo começa com o provocante pedido da mãe dos filhos de Zebedeu, Tiago e João, desejosa em ver seus dois filhos sentados, no Reino, um à direita e outro à esquerda do grande Rei. A lógica que preside o pedido ultrapassa a simples nobreza materna como expressão de zelo e bem querer para revelar o limite humano, constante e crescente, de se ocupar lugar de importância e destaque. Tanto é verdade que os outros dez discípulos se indignaram ao ouvir o pedido. Uma indignação que revela mais da disputa que da compreensão da lógica que o Mestre acaba de anunciar no diálogo. Jesus confronta o pedido da mãe a uma escolha feita por Deus, o Pai, para ocupação dos dois lugares, à direita e à esquerda. Isto significa referir-se a uma lógica maior e acima da dinâmica comum de disputas e de preferências subjetivas. Importante ter presente também o diálogo entre o Mestre e os discípulos, quando Jesus lhes pergunta sobre sua disposição e coragem de beber do seu cálice e receber o seu batismo. Eles prontamente, e impensadamente, talvez movidos pela sedução de lugares e títulos importantes, respondem afirmativamente. Uma resposta rápida demais que mostra a falta do forro interior:  aquele que não permite substituir a primazia do serviço pelo gosto dominador de ter poder.

A falta do forro interior que preside o serviço que se presta por amor, jamais como afirmação do próprio valor em busca de reconhecimento e premiação, se verifica no conjunto dos 12 discípulos. Dois deles revelam a ausência do forro interior no pedido intermediado pela mãe, os outros dez por meio da indignação. Todos eles não haviam alcançado a estatura de audazes e qualificados discípulos, recebendo do Mestre o princípio de ouro na conquista de sua identidade: quem quiser ser o primeiro seja o servidor de todos, assevera o Mestre, indicando a única dinâmica possível com força para corrigir os comprometimentos do coração humano, revelados nas disputas, nos sentimentos menos nobres na consideração do outro e na corriqueira necessidade de desprestigiar o próximo.

A indignação dos dez discípulos revela o risco humano de pautar a própria vida na dinâmica da disputa, acirrando a hierarquização das relações e dos postos a serem ocupados, aumentando assim o grau e a intensidade das patologias que tiram o sossego e a alegria simples do viver, sem pesos. Há de se considerar, pois, o nascedouro dos adoecimentos de indivíduos e instituições como palco dessas dinâmicas viciadas. O indivíduo não consegue alcançar uma estatura de nobreza, com desempenhos até mesmo aquém do alcance de suas aptidões, por falta deste forro interior que se alcança dando primazia ao servir. Não raro e pesado é desempenhar o que se faz como autoafirmação e necessidade de validar-se, especialmente em comparação com o outro, fora dos trilhos do amor verdadeiro. Por isso se dizer que é possível, motivado pelo egoísmo, até mesmo construir casas, hospitais e escolas para os pobres. Grave, gravíssimo é desejar e chegar a ocupar lugares sem comprovada competência e eficiência apenas como desejo que atende a uma demanda reveladora da falta de qualificação humana e espiritual.

O remédio apontado é a primazia do servir. As demandas humanas, sociais e políticas são inúmeras. O foco repousa no próximo como forma de liberar-se de um afazer que simplesmente possa garantir a própria sobrevivência, com indiferença ao outro. Não menos adoecidas e enrijecidas, padecem as instituições e segmentos da sociedade, com configurações que alimentam as patologias das disputas e o patenteamento das discriminações, incidindo e comprometendo sua identidade e a própria missão, se enfraquecendo ao se tornar um clube de poucos correligionários.

O Mestre conhece a dinâmica do coração de seus discípulos e lhes indica a saída, ilumina o entendimento de suas relações com a regra de ouro da primazia do servir, não como simples afã laboral. Leva ao ápice com a referência de sua exemplaridade de Filho do Homem que veio para servir e não ser servido e dar a sua vida em resgate de todos, afirmando o único caminho que cura as patologias dos lugares disputados e manipulados por preferências meramente humanas, os títulos e as roupagens que se tornam, cedo ou tarde, apenas referências póstumas. Valha a primazia do servir, como fonte de alegria duradoura e de cumprimento da missão de promover vida.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte(MG)

Deixe uma resposta