A sociedade civil e a comunidade política são interdependentes, mutuamente se influenciam. Mas é preciso reconhecer: a sociedade civil tem, hierarquicamente, primazia sobre a comunidade política. A Doutrina Social da Igreja Católica ensina que o contexto político deve estar a serviço da sociedade civil, dedicando-se ao seu bem e ao seu equilíbrio. Contudo, os cenários de devastação, com mortes, violências, fome, desemprego e descompasso social, demonstram sobejamente que há descaso em relação à primazia da sociedade civil. A população brasileira é vítima das ineficiências da comunidade política, que não cumpre adequadamente as suas tarefas. O conjunto de desajustes no enfrentamento da pandemia é sinal desta realidade, com impactos ainda mais graves na vida dos pobres e vulneráveis.
Entre as vergonhosas feridas sociais, causa especial tristeza a fome de milhares de pessoas que habitam este território abençoado por Deus – com riquezas para ser um celeiro do mundo. Uma contradição que revela desafio da sociedade civil: recuperar a sua primazia, uma tarefa cidadã. A assustadora desconsideração desse primado leva a atrasos civilizatórios que demandarão muito tempo e esforços extraordinários, sobretudo lucidez e competência, para serem superados. A tarefa cidadã de recuperar a primazia da sociedade civil é desafiadora e exige dedicação a processos que promovam o bem comum. Isto significa, neste momento, salvar vidas do vírus mortal, da fome e do desemprego, contando com quem tem competência para corrigir descompassos gerados por carências humanísticas e opções cegas que vêm alavancando a atual crise.
Urgente é uma reação ancorada nos princípios da legalidade, para que a administração pública, em qualquer nível – nacional, estadual, municipal – cumpra a sua finalidade de servir aos cidadãos. O Estado é o gestor dos bens do povo, devendo administrá-lo para garantir o bem comum. Quando administradores públicos negociam ou vilipendiam o bem comum comprovam a própria incompetência. Trata-se de crime inaceitável. Por isso, posturas, escolhas e a adoção de caminhos que sejam contraponto ao equilíbrio global da sociedade não devem ser aceitos. O Papa Francisco, assertivamente, afirma, na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, que diante do compromisso de amar a todos, sem exceção, o amor a um opressor não significa consentir com as suas atitudes. Pelo contrário, amar corretamente o opressor, conforme ensina o Papa Francisco, é procurar, de várias maneiras, fazê-lo deixar de oprimir, tirando-lhe o poder que é mal administrado e que o desfigura como ser humano.
A comunidade política há de ser modificada a partir das indicações da população sobre a necessidade de se tomar novo rumo, por meio de recursos legais corretivos. Sem esse novo rumo, vidas continuarão a ser dizimadas e instituições, sustentáculos dos funcionamentos democráticos, perderão força – prevalecerá um verdadeiro caos. A sociedade civil, detentora da primazia, tem o dever de investir no equilíbrio, livrando-se das paixões que costumam cegar. Neste horizonte, é fundamental convencer, a partir do diálogo, aqueles que equivocadamente optam pelo caos, achando que se trata do melhor caminho – uma ilusão. Essas pessoas dedicam-se, ou submetem-se, às manipulações e às falácias que se camuflam na defesa de algumas poucas “bandeiras”. Ignoram, assim, tantas outras “bandeiras” que precisam ser defendidas e carregadas para gerar as mudanças sociais esperadas por todos.
Os que optam pelo caos, dedicando-se às falácias e às manipulações, ajudam a conduzir a sociedade na direção de extremismos e radicalismos. Querem promover demolições de todo tipo, a partir de linguagem desestabilizadora, sem fidelidade à verdade, propagando mentiras para alcançar seus objetivos. Os saudosismos político-partidários também não contribuirão para que seja construído um tempo novo, com mais respeito à vida, em todas as suas etapas. Para que urgentemente seja consertado o contexto social é preciso investir na dimensão moral que qualifica a cidadania e, consequentemente, as autoridades. Isto significa alicerçar-se na dimensão que está fora do arbítrio e da vontade dos que estão no poder, fortalecendo as instituições.
A partir de suas identidades e missões, as instituições têm o papel de “ir a campo para nova semeadura”, limpando discursos, arejando mentes, para que sejam intuídas novas ações capazes de promover o primado da sociedade civil e da defesa do bem comum. Ações corajosas e transformadoras na contramão de negociatas. Com a tarefa de se avançar no combate à pandemia, todos assumam o compromisso de dialogar mais sobre os rumos políticos do País, exigindo que as instâncias do poder alicercem-se nos parâmetros da ciência e da boa governança. A fidelidade a esse compromisso é que possibilitará a construção de nova realidade social, política, econômica, cultural e religiosa capaz de recuperar a primazia da sociedade civil, fundamentada na democracia – construtora e guardiã do bem comum pela justiça e pela paz.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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