“Santificai em vossos corações o Senhor Jesus Cristo, e estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pedir”. Essa sugestão do apóstolo Pedro (1Pe 3,15) é uma síntese do que a Bem-aventurada Dulce dos Pobres procurou realizar ao longo de sua vida. Pedro estava preocupado com a perseguição que começara contra os primeiros cristãos e queria lhes ensinar como reagir quando perseguidos. Recomendou-lhes dar um lugar especial a Cristo em seu coração, cultivando com ele uma profunda amizade, mesmo porque não era contra eles que nascia o ódio dos perseguidores, mas contra o Senhor Jesus.
Irmã Dulce não foi perseguida, não foi caluniada e, longe de sentir nascer contra si o ódio da sociedade, era admirada, louvada e procurada por multidões. Sabemos que a causa de seu longo martírio – e uso aqui essa palavra no seu sentido original, referindo-me à pessoa que dá testemunho de Jesus Cristo – teve outras causas: (1ª) Deus lhe deu um coração sensível, capaz de se condoer com a situação dos pobres. Ela então sofria porque, por mais que os ajudasse, via que mais lhe restava por fazer. (2ª) Deus permitiu que sua saúde fosse frágil. Como ela sentia a força de Cristo em seu coração, esquecia-se de seus próprios sofrimentos, para debruçar-se sobre a dor dos pobres que encontrava ou que a procuravam. (3ª) Deus lhe concedeu um coração ousado, capaz de dar passos que o bom senso humano não recomendaria; por isso mesmo, ela precisou enfrentar incompreensões e sofrimentos.
A síntese de seu martírio, contudo, foram os últimos 16 meses de sua vida – meses de agonia, meses de Calvário. Nessa última etapa de sua caminhada, passou por sofrimentos tais que nos fazem concluir que Deus não poupa em nada os seus amigos e amigas – antes, espera que lhe demonstrem seu amor também dessa forma e nessa hora, e a demonstrem especialmente aos necessitados.
Nos pobres que Irmã Dulce acolhia, nos doentes que abraçava, nas crianças que encontrava abandonadas, tinha a capacidade de ver o rosto de Jesus. Por isso, não lhe era difícil socorrê-los; era, antes, uma oportunidade de demonstrar ao seu grande amigo o quanto lhe queria bem. Ela mesma testemunhou isso: “Não há maior alegria neste mundo que entregar-se totalmente a Deus, servindo-o na pessoa de nosso irmão mais necessitado, mais sofredor” (Summarium, p. 580).
Tendo a Santa Sé aprovado o milagre necessário para a sua canonização, cuja data ainda não está determinada, cabe-nos fazer a pergunta: Qual a herança que Irmã Dulce nos deixou? Ela nos deixou uma importante obra social e deixou à Igreja uma nova congregação religiosa. Creio, contudo, que sua maior herança consiste na motivação que orientou a sua vida, que a levou a fazer as escolhas que fez e que determinou a direção dos seus passos. Essa motivação tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré. Para Irmã Dulce, conhecer a Jesus Cristo pela fé foi a fonte de sua alegria; segui-lo foi uma graça, e transmitir o amor que dele recebeu, e com o qual se enriqueceu, foi a tarefa que sentia ser sua obrigação levar adiante (Cf. Conferência de Aparecida, 18). Cabe-nos, pois, acolher essa herança e nos aprofundar nela.
Para quem Irmã Dulce deixou sua herança? Ela a deixou para todos nós. Além de sermos responsáveis pela continuidade de sua Obra Social, somos herdeiros das motivações que orientaram e deram vida a seus passos. Contudo, não nos esqueçamos: será necessário, sim, irmos ao encontro daqueles que foram a razão de ser dos trabalhos de Irmã Dulce. Mas, como ela, não lhes levemos apenas pão, remédio e cura física. Somos chamados a dar aos necessitados aquele pelo qual Irmã Dulce viveu, trabalhou e sofreu: Jesus Cristo. Em outras palavras: Irmã Dulce não nos deixou apenas uma ONG para cuidar dos pobres. Deixou-nos, sim, uma missão: a de colocar esses nossos irmãos e irmãs que sofrem em contato com Jesus Cristo, para que tenham um encontro pessoal com ele e possam, então, segui-lo. Fazendo isso, estaremos demonstrando ter compreendido e acolhido a rica herança que a Bem-aventurada Dulce dos Pobres nos deixou.(Vatican News)
Dom Murilo S.R. Krieger, scj – Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil
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