Ouvir os clamores é indispensável para combater indiferenças que configuram uma ordem social e política contrária à dignidade humana neste complexo momento da contemporaneidade. Verifica-se que há grande dificuldade para escutar clamores dos sofredores, pobres, enfermos, indefesos e idosos. Comprometida a escuta, consequentemente, estarão também prejudicados os diálogos e entendimentos. “Quem tem ouvidos, ouça”. Exercer a escuta é a recomendação pedagógica de Jesus.
Com frequência, dá-se ouvidos a muitas coisas que alimentam o mal. De maneira patológica, dedica-se atenção ao cardápio de perversidades que alimentam sentimentos destrutivos. Um sinal desse comportamento é a consideração, popularizada, de que “notícia boa é notícia ruim”. Configura-se, assim, um inconsciente coletivo que gera interesse e envolvimento com o que é cruel e tem força destrutiva sobre imagens e reputações, ainda mais quando se ancora em inverdades. Há uma crescente perda do encantamento pelo bem. E é o bem que gera o sentido necessário para o sustento da vida, a inspiração para intuições que renovam dinâmicas, permitindo encontrar caminhos e respostas novas ante as carências de toda a sociedade.
A escuta daquilo que alimenta o mal compromete uma indispensável competência humana: dar ouvidos aos clamores que brotam das diferentes formas de sofrimento. Há de se recuperar essa capacidade. Ao se dar ouvidos aos clamores dos que sofrem, nas muitas periferias – geográficas e existenciais -, ocorrem transformações profundas na interioridade humana, na espiritualidade de cada pessoa, nas sinapses cerebrais. São alimentados os muitos sentimentos que podem sustentar o sentido do viver, inspirar escolhas, qualificar processos e garantir competência assertiva no exercício de responsabilidades legislativas, judiciárias e executivas. Permite também a qualificação da insubstituível competência cidadã de ser solidário e de cultivar a compaixão. Certamente, aí está um dos remédios para curar a sociedade da violência.
A insensibilidade para se ouvir os clamores explica também o enfraquecimento de mentes, que se tornam incapacitadas para lidar com desafios mais exigentes. Por isso, há tanta impaciência e precipitações, que levam a escolhas cegas e desistências fatais ante a nobreza e o dom que é viver. Não menos suicida é a configuração de situações regidas pelas inteligências e escolhas, decisões e orientações de quem, ainda que ocupando cargos importantes, não tem a necessária sensibilidade cultivada a partir da prática espiritual e cidadã de se dar ouvido aos clamores.
Sábia é a mãe que sai à procura de oportunidades para que seus filhos exercitem, por inserções no mundo dos pobres e sofredores, a capacidade de ouvir clamores, enquanto prestam serviço abnegado e oblativo. Assim, não se deixa assorear a fonte do sentimento de compaixão e de solidariedade, tão, e quase sempre mais importante, que a fonte luminosa da razão. Práticas religiosas, exercício de poderes em governos, relacionamentos sociais e humanitários não podem dispensar o recurso simples, mas com força educativa e terapêutica, que é ouvir os clamores.
É significativa a referência religiosa dos primeiros cinco livros da Sagrada Escritura, o Pentateuco, ao indicar rumos na busca de equilíbrio na ordem social e política do povo de Deus: indispensável é o exercício permanente de se ouvir os clamores dos pobres e sofredores. E não se trata, absolutamente, de conivência com algum tipo de configuração meramente ideológica. Trata-se de caminho em direção a Deus e para conquistar uma espiritualidade necessária na relação entre semelhantes e com o Criador de todas as coisas. Os ouvidos dados aos clamores dos sofredores e pobres permitem a arquitetura do genuíno sentido da pobreza – remédio para a doentia mesquinhez que enjaula almas e corações sob a égide da idolatria do dinheiro. O destrutivo apego aos bens leva à indiferença. Orienta posturas de quem até fala sobre os pobres, tem discursos em sua defesa, mas, mesmo com os cofres cheios, não abre mão de centavos para ajudá-los.
Ora, no coração de Deus, os pobres e sofredores ocupam lugar preferencial. Ele escuta seus clamores e deles se compadece. Sobre eles se debruça. Dedica-se à humanidade pobre, pecadora e esgarçada por se distanciar de seu amor. Sua compaixão se desdobra em gestos de salvação, no ato maior e perfeito de amor, a oferta de seu filho amado, Jesus Cristo, o Salvador. O mundo doente, homens e mulheres doentes, necessitados de fecunda terapêutica para mudar rumos e recompor cenários, podem encontrar saídas, soluções e conquistar um tempo novo. Mas, para isso, devem investir na experiência-exercício de se dar ouvido aos clamores dos pobres.
O convite é dirigido a todos, sem exceção: dar ouvido aos clamores que vêm de longe e de perto, de muitos lugares. Os resultados serão surpreendentes no coração de cada pessoa, tocado pelo bálsamo da compaixão. Será alcançado o sentido para se lutar e se fazer o bem, impulsos para novas práticas, a partir da solidariedade. É uma experiência espiritual para dar sustento ao viver, com mais sabedoria nos diferentes modos de agir no mundo. Hoje, agora, não feche os seus ouvidos. Por um novo tempo na sua vida e na qualificação de sua cidadania, de toda a sociedade, dê ouvidos aos clamores. “Quem tem ouvidos, ouça”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Comments
No comment