A sociedade brasileira está desafiada a lutar para evitar a legalização do “eclipse” do valor da vida: a permissão do aborto até o terceiro mês de gestação – proposta da Arguição do Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que está sendo julgada no Supremo Tribunal Federal (STF). É de conhecimento de todos: legislar é tarefa do Parlamento que, conforme a sua identidade, deve representar a população. A decisão sobre o aborto demanda um amplo processo de escuta, capaz de identificar o pensamento e o sentimento que prevalece na sociedade. O desrespeito à necessidade de ouvir e de dialogar revela ditadura no exercício do poder, perpetrando uma clara imposição de relativização ético-moral. No atual contexto, esse desrespeito pode levar ao inadequado tratamento de um tema complexo para fazer valer argumentações que dão primazia a subjetivismos, desconsiderando entendimentos coletivos amplos e já assimilados. A vida deve estar sempre em primeiro lugar. É intocável na sua constituição sagrada.
A interpretação de uma pessoa ou de um pequeno grupo pode levar toda sociedade a desvarios e absurdos, especialmente quando desrespeita princípios morais e valores intocáveis. É um risco desconsiderar inegociáveis princípios. Não podem ser admitidas justificativas – ainda que sejam apresentadas com linguagem sofisticada – para tentar eclipsar o valor da vida. O “eclipse” do valor da vida, a partir dos diferentes tipos de violência e de indiferença, constitui praga terrível que se dissemina na contemporaneidade. Dentre os males que precisam ser enfrentados está a insistência em se legalizar o aborto no Brasil, grande batalha em curso, que pede bom senso de todos os cidadãos, especialmente dos cristãos. São necessários reações, atitudes, eventos, pronunciamentos que iluminem a vida, para que seja enxergado, por todos, o seu valor. É preciso gerar uma necessária sensibilização para impedir a relativização da vida, que escancara as portas para outros desmandos que podem levar a sociedade brasileira ao desequilíbrio moral e ético, com prejuízos para a justiça e a paz.
O princípio da inviolabilidade da vida, em todas as suas etapas, da concepção ao declínio com a morte natural, mostra que Deus não é o autor da morte. A perdição dos vivos não alegra Deus. O entendimento emoldurado pelas indicações do Evangelho da Vida é que a morte está na contramão do que o Pai deseja para a humanidade. E aborto significa morte. Interpelante é a afirmação do Papa Francisco: o aborto não “desengravida”, mas consolida o “ser mãe de um filho morto”. Na verdade, mãe de um filho vítima indefesa de um assassinato. Um crime semelhante ao primeiro homicídio, narrado pelo livro do Gênesis. Caim matou Abel, violando um parentesco espiritual com propriedade de congregar homens e mulheres em uma grande família, com os mesmos direitos e deveres. Os cristãos sabem que a raiz de qualquer violência contra o próximo é a ação do maligno, na contramão do princípio bíblico de amar uns aos outros.
É preciso redobrar a atenção para não serem agravadas negligências e relativizações de princípios morais, como a inviolabilidade da vida desde a concepção. Quando princípios morais são desconsiderados abrem-se caminhos para homicídios, abortos, guerras, massacres, genocídios. No mesmo horizonte da defesa da vida que inspira a luta contra o aborto está a coragem profética, a generosidade, para se dedicar à superação da miséria e da fome, de tudo que ameaça o ser humano. Muitas dessas ameaças são consequências de relativizações perigosas, que buscam eximir as pessoas de suas responsabilidades, de assumirem compromisso com a sociedade. Essas relativizações, sabe-se, são consequências de uma grande crise cultural, agravada pelo crescente ceticismo sobre os fundamentos do conhecimento e da ética, confundindo as pessoas sobre seus direitos e deveres. Um contexto que favorece a multiplicação de eclipses sobre o valor inviolável da vida. Ainda mais neste cenário, o Estado não pode reconhecer a legalidade de qualquer atentado contra a vida.
São João Paulo II, na Carta Encíclica Evangelho da Vida, já alertava: as circunstâncias da exclusão social podem gerar um clima de difusa incerteza moral que atenua a responsabilidade subjetiva do indivíduo, justificando e ampliando a cultura da morte. Um caminho que facilita a difusão do aborto, subtraindo-o da responsabilidade social. O eclipse que envolve o valor da vida é o mesmo que que obscurece o sentido de Deus e do homem. Em embate estão a cultura da vida e a cultura da morte. O distanciar-se de Deus leva, fatalmente, à perda do sentido sobre o próprio homem – relacionado à sua dignidade e à sua vida. Um grande drama que leva muitas pessoas a não compreenderem o sentido mais autêntico de sua própria existência e a necessidade de se respeitar seu semelhante. A luta deste momento, ao buscar evitar a legalização do aborto, contempla igualmente a meta de superar exclusões sociais perversas. Passo muito necessário é recompor e ampliar o sentido sobre Deus, promovendo uma iluminação que ultrapassa subjetivismos, morais ou legislativos. Esse sentido permite enxergar o valor intocável e sagrado de toda vida humana.
Defender o inestimável valor da vida, princípio fundamental, requer a participação de todos, evitando um amanhã emoldurado por desastroso relativismo ético, capaz de levar a pesadas consequências a partir de outras posturas e decisões. Opor-se à legalização do aborto é um serviço de ordem espiritual e moral, com possibilidade de promover relevantes mudanças culturais, resgatando o autêntico sentido da vida, que se desdobra no compromisso com o semelhante. A promoção desse autêntico sentido, dedicação para não eclipsar o valor da vida, significa também investir na justiça e na paz.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte(MG)
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