A humanidade vive triste flagelo em razão de colapsos nos campos da saúde, da economia e da política, que impedem o início de um novo ciclo civilizatório, evidenciando um grave problema: a generalizada falta de cuidado. É preciso, e urgentemente, revitalizar em cada pessoa, a condição de cuidador, para inspirar uma cidadania qualificada. Se o ser humano não assumir sua condição de cuidador, dificilmente conseguirá debelar pandemias, mudar cenários flagelados por desigualdades sociais e superar situações vergonhosas de exclusão, que geram cenários de guerra quando se consideram as estatísticas de mortos, de famintos e de encarcerados.
O compromisso de cuidar do próximo, que é irmão, se assumido pela humanidade, é alavanca propulsora capaz de tirar a sociedade de seus abismos. Possivelmente, há quem pense que essa constatação é simples inferência romântica, ingênua, com pouca incidência na realidade. Mas desconsiderar a força do cuidado é mais um obstáculo para se alcançar as metas desejadas pela sociedade, traduzidas nos votos repletos de esperança que tanto marcam o início de novo ano civil. O descuido com o próximo e com a Casa Comum comprova o tamanho da crise civilizacional que pesa sobre os ombros da humanidade. Faz a sociedade sofrer com processos de despersonalização, com desperdícios e, particularmente, com a indiferença que mata, pela economia, pela mesquinhez de apegos e por um precário sentido de corresponsabilidade em relação ao outro, que é irmão.
Assim, assiste-se a uma realidade em que inimizades e disputas alimentam almas vorazes que se deleitam com o fracasso alheio. Pobres almas que se apegam à ilusória proteção, pois somente contribuem para consolidar uma humanidade com caraterísticas autofágicas, na contramão de tudo o que os avanços científicos e as conquistas tecnológicas apontam. Sinal evidente dessa humanidade que se autodestrói é a dificuldade de se respeitar normas, a exemplo da recomendação para se usar máscaras, evitar aglomerações e, disciplinarmente, seguir protocolos sanitários, para combater a pandemia da covid-19.
Há, pois, uma carência no sentido de corresponsabilidade que incide no exercício da cidadania, contamina instituições, domina segmentos e obscurece a ação de autoridades – sem força de liderança para articular propostas, intuir estratégias e agir com rapidez para superar a pandemia e outras graves crises. A situação global exige de líderes respostas qualificadas e não permite titubeios – responsáveis também pelo caos social, sanitário e econômico que pesa sobre os ombros de todos, embora alguns, pecaminosamente, lucrem com o sofrimento alheio.
Urgente é despertar e educar a consciência de cada pessoa para que todos assumam a condição de cuidadores. O ponto de partida é a conversão de hábitos políticos, culturais e espirituais, para estabelecer um novo estilo de vida. Trata-se de um movimento civilizacional complexo, exigente, de aprendizagem desafiadora, pois são muitos os hábitos já assimilados, que alimentam pesados riscos. A falta de cuidado com o próximo e com a Casa Comum é estigma consolidado, facilmente identificado em diferentes gestos que revelam indiferença, desperdícios e carência de lucidez. Por isso, avanços na ciência e na tecnologia, que oferecem oportunidades para novos passos civilizacionais, tornam-se oportunidades perdidas, pois processos espirituais e adequado exercício da cidadania, que deveriam ser a regência das mudanças almejadas pela humanidade, permanecem aprisionados nas estreitezas de obscurantismos, polarizações, fechamento ao diálogo. Consequentemente, compromete-se a paz, o desabrochar da cultura. Contenta-se com um “ar viciado”, incapaz de arejar o exercício da cidadania.
Muitas vezes a humanidade parece estar em um “beco sem saída”, pois continuam a aumentar os prejuízos que ameaçam o presente e o futuro. Hoje, é urgente e muito aguardada a vacina capaz de proteger o mundo da covid-19. Mas é igualmente imprescindível que cada pessoa também busque imunizar-se de outro vírus pandêmico: o descuido com a Casa Comum e com o outro, que é irmão e irmã. Todos se tornem cuidadores uns dos outros. O gosto pelo cuidado seja assumido como ethos constitutivo e insubstituível do ser humano. A atitude de cuidar precisa alimentar processos de humanização.
O ponto de partida para tornar-se cuidador é a simplicidade de um princípio cristão de ouro: considerar que o outro é sempre mais importante. Assim, o cuidado com tudo e com todos se torna compromisso cotidiano, inspirando a opção preferencial pelos pobres e a preservação do meio ambiente. E a vestimenta interior de cada ser humano pode se livrar dos rancores e de outros males. Passa a ser tecida com os fios preciosos da solidariedade, que compõem a roupa do verdadeiro cuidador.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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