Uma constatação dura: junto com os perigos óbvios e imediatos derivados dos conflitos, estão os impactos a longo prazo deste início de vida que são potencialmente catastróficos. Segundos os especialistas, quando crianças pequenas sofrem eventos adversos e traumáticos prolongados ou repetidos, o sistema de gestão do estresse cerebral é ativado sem receber qualquer alívio, causando “stress tóxico”. Ao longo do tempo, os agentes de stress destroem as ligações neurais existentes e dificultam a formação de novas ligações, conduzindo a consequências duradouras para a aprendizagem, o comportamento e a saúde mental e física das crianças. Uma situação que pode condicionar a vida da criança para sempre.
Lendo o relatório do Unicef nos deparamos com testemunhos de vários agentes humanitários: “algumas das crianças que vemos – diz um agente do Unicef no Iêmen – tremem de medo, incontrolavelmente, por horas e horas. Elas não dormem. Você pode ouvi-las que se queixam, não com um choro comum, mas com um frio e fraco gemido. Outras estão tão desnutridas e traumatizadas e se distanciam emocionalmente do mundo e das pessoas que as rodeiam, tornam-se ausentes e torna-se impossível para elas interagirem com suas famílias”.
Já uma agente humanitária no Afeganistão fala de Heraab, de 5 anos, que vive numa comunidade onde está constantemente exposto a ruídos de explosões, cheiros de fumo, acompanhado pelo barulho regular das sirenes, seja da polícia ou da ambulância, ou da buzina persistente de carros e motos que correm para o hospital com os feridos. Ele sussurra e acorda à noite se um caminhão passa rapidamente, fazendo por vezes tremer as janelas da casa, pensando que pode ser outro ataque.
Na Somália, algumas crianças estão assustadas e parecem muito ansiosas, outras são muito agressivas. Elas ficam assustados com os visitantes e fogem quando veem chegar os veículos dos visitantes. Os carros lembram-lhes os combates, armas de guerra das quais tiveram de fugir. O conflito tirou-lhes a infância.
Este ano se recorda o 30º aniversário da fundamental Convenção sobre os Direitos da Criança, na qual, entre outras coisas, os governos se comprometeram cuidar, proteger e tratar as crianças atingidas por conflitos. Mas hoje, o número de países envolvidos em conflitos internos ou internacionais é o mais elevado dos últimos 30 anos, ameaçando a segurança e o bem-estar de milhões de crianças.
Hospitais, centros de saúde e espaços amigos das crianças – todos eles prestando serviços básicos a pais e crianças – estão sob ataque devido a conflitos em todo o mundo nos últimos anos. Oferecer espaços seguros para as famílias e seus filhos que vivem em zonas de conflito, onde as crianças podem usar as brincadeiras e o aprendizado precoce como saídas para alguns dos traumas que sofreram e fornecer apoio psicossocial às crianças – e suas famílias – são partes fundamentais da resposta humanitária que todos deveriam dar.
A dura realidade ainda espera respostas concretas de governos e organismos para dar esperança às crianças que vivem em áreas de conflito. E nessas áreas seria essencial que os pais interagissem com seus filhos para a ajudá-los e protegê-los dos efeitos neurológicos negativos derivados dos conflitos. Mas nem sempre é assim, pois em tempos de conflito, os pais ficam muitas vezes sobrecarregados. O que essas famílias precisam é de paz, mas até consegui-la, elas precisam desesperadamente de mais apoio para poder responder à devastação que enfrentam as milhões de novas vidas nascidas todos os anos.
Comments
No comment