Apelos à conversão

, Artigos

Novamente já são vivenciados os tempos da Quaresma – delicadeza de Deus pela liturgia na Igreja Católica – inspirando reflexões sobre a velocidade do tempo, que se contrasta com a vagareza do coração humano para se converter e encontrar as respostas transformadoras da vida e da sociedade. Ao invés disso, a humanidade mantém-se aprisionada no pecado e nas dinâmicas viciadas pelo indiferentismo, sobretudo pela mesquinhez que negocia a fraternidade universal e solidária. O coração humano faz-se necessitado da Quaresma para conquistar nova qualidade e alavancar novas atitudes, capazes de mudar os rumos da sociedade contemporânea. Nesta direção, necessário é reconhecer e se aproximar do amor de Deus para impulsionar práticas solidárias e cidadãs, libertando vidas e corações de amarras que perpetuam escravidões, para a urgente superação de atentados contra a vida de todos e da casa comum. Os apelos à conversão são indispensáveis para se evitar colapsos que se repetem, nos âmbitos político, social, ambiental e humanitário, inviabilizando o sonho de uma sociedade justa e igualitária.  

A civilização está desafiada a compreender, convictamente, que a busca por uma profunda mudança de rumos constitui urgência. Isso significa cultivar novos estilos de vida, a partir de uma qualificação humano-afetiva e espiritual. Uma qualificação tão profunda que toque as veras do coração e possa gerar uma conduta nova, com incidências na vida social. A necessidade de mudar deve causar inquietação particular nos cristãos, pelo intrínseco compromisso de fé no anúncio do Reino de Deus. Os discípulos de Cristo são chamados a marcar a própria vida e a sociedade com o sabor do Evangelho de Jesus, enquanto se caminha como peregrino de esperança, horizonte rico e inspirador deste ano jubilar em curso. Vale ter presente a beleza singular e interpelante da língua hebraica que desenha o caminho e a experiência que capacitam para acolher os apelos à conversão.  

Encontrar direções novas para o que está, evidentemente, errado e comprometendo o bem é tarefa primordial. Essa tarefa está além de uma verbalização, de uma descrição a partir da linguagem, daquelas situações que precisam ser modificadas. É preciso nutrir um profundo sentimento de contrição. Assim, abrir-se ao sentimento que desarma o coração e permite, pela compunção, viver frutuosa conversão pessoal e comunitária. Essencial, pois, é articular a clareza da necessidade incontestável de mudar rumos com a convicção interna que rege emoções, orientando-as para a real necessidade de uma renovação interior. Sem esta articulação corre-se o risco de apontar o dedo aos outros e não ser exitoso no processo da própria conversão, cristalizando-se em maldades e outras deficiências, inviabilizando contribuições significativas para a qualificação da sociedade.  

A contrição do próprio coração é dinâmica indispensável no processo de conversão, evitando-se a tendência de justificar-se a partir dos próprios sentimentos e, com isto, reafirmar vícios, com pouca disponibilidade para se experimentar transformações e a reconciliação com Deus. Somente pelo caminho da contrição consegue-se caminhar com o semelhante, seguindo os passos de Jesus, na esperança, sem preconceitos e discriminações. Um fenômeno muito comum é a tendência de se querer caminhar apenas com os iguais, acirrado por preconceitos e critérios meramente ideológicos. Uma atitude que inviabiliza a comunhão, que é apelo essencial e inegociável de conversão. Os que rifam princípios fundamentais do humanismo cristão como a capacidade testemunhada de ser grato por todo o bem recebido, até mesmo por um copo d’água, são incapazes de viver o “caminhar juntos”, inerente ao processo de conversão. Também não conseguem respeitar o semelhante, considerando-o apenas quando favorece seus próprios interesses. Acabam por eleger-se como critério balizador para decretar o que e quem é bom. A autorreferencialidade é um risco, conforme lembra o Papa Francisco na sua mensagem quaresmal.  

Nesta quaresma, o Pontífice indica a determinante tarefa de exercitar, na família, na própria vida, nos locais de trabalho, nas comunidades paroquiais e religiosas, a capacidade de se caminhar com os outros, de ouvir e de vencer a tentação de entrincheirar-se na autorreferencialidade – que significa olhar apenas para as próprias necessidades. Válido é interrogar-se sobre a capacidade de trabalhar em sintonia com o semelhante, especialmente com aqueles com quem se estabelece divergências.  Um importante ponto de partida é dedicar-se à compreensão lúcida da ecologia integral e relacioná-la com a promoção da fraternidade, conforme propõe a Igreja Católica no Brasil, na Campanha da Fraternidade 2025 – Fraternidade e ecologia integral. Compreender a abrangência e a força interpelante do que significa ecologia integral pede um olhar capaz de reconhecer que estão interligadas as muitas crises vividas no mundo, com seus aspectos social, ambiental e econômico. Compreender essa abrangência contempla enxergar também a complexa relação entre todos os seres vivos do planeta e o meio ambiente.  

O adequado entendimento sobre o que significa ecologia integral pode inspirar diálogos sobre as condições de sobrevivência na sociedade, honestamente questionando modelos de desenvolvimento, produção e consumo que são insustentáveis. Permite superar ignorâncias que nascem de conhecimentos fragmentados, tão comuns na atualidade. Nesta direção, não se pode considerar a natureza como algo separado daquilo que é o ser humano. A humanidade é parte da natureza, do meio ambiente.  

Parta-se sempre da avaliação da própria interioridade, procurando qualificá-la, para investir na qualidade das relações interpessoais, no desenvolvimento sustentável da sociedade. Na busca de soluções para os muitos problemas vividos pela humanidade contam essencialmente dinâmicas e processos de reconciliação com o semelhante e com Deus. Investir nessas dinâmicas é indispensável para se alcançar novo patamar civilizatório nas instituições, na política, encontrando novas formas de se combater a violência, a pobreza, de devolver dignidade aos excluídos e, adequadamente, cuidar do meio ambiente. Os apelos à conversão na ordem espiritual têm propriedades para corrigir muitos aspectos do antropocentrismo moderno, possibilidade de se investir em novos modelos, encontrar novas soluções e esperançar um tempo novo para o ser humano na sua travessia. Uma vida reconciliada com o semelhante, com o planeta e com Deus, a partir da humildade de saber ouvir e acolher os apelos à conversão. 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)

Deixe uma resposta