A Quaresma é um caminho de conversão e purificação, possibilidade de fortalecer a interioridade humana, fragilizada pelas dificuldades cotidianas e pela realidade do pecado. O esforço para revestir o coração com tecido de qualidade, à altura de uma conduta cidadã e cristã, inclui a adoção de novos propósitos que alavanquem o bem comum e a felicidade de cada dia. Neste ano, o horizonte do caminho quaresmal está estrelado por um convite instigante: cada pessoa se torne agente da amizade social, cultivando relações humanas mais qualificadas. Um percurso que contempla enfrentar preconceitos, discriminações e desavenças – males que desfiguram a identidade do ser humano, marcada pela filiação de todos ao mesmo Pai, irmãos e irmãs uns dos outros. Trata-se de nobre propósito, caminho de santificação, com incidências transformadoras em níveis muito profundos. Sinal de esperança para vencer cenários de exclusões, perseguições e guerras – é como se o mundo vivesse a terceira guerra mundial, em pedaços, nas palavras do Papa Francisco.
Válida para todos, sem exceção, é a advertência quanto ao risco de se adotar, patologicamente, a “síndrome de Caim”. A narrativa do Livro do Gênesis, capítulo quarto, tem ápice na pergunta de Deus, em diálogo com Caim: ‘Onde está teu irmão?’ A resposta do assassino é o extremo da indiferença e da crueldade de um coração humano. Caim respondeu: ‘Não sei’. E completa com a insolência perversa de quem está enjaulado em si mesmo: ‘Acaso sou guarda do meu irmão?’ Uma afronta a Deus, o Pai de todos, que são irmãos e irmãs uns dos outros. Com suas atitudes, Caim agrada ao maligno, tornando-se seu servo na calculista eliminação do outro, de seu irmão, por orgulho, ciúmes e ressentimentos. O orgulho, o ciúme e o ressentimento constituem perigosíssimo risco com força para ampliar, diariamente, a inimizade entre as pessoas, inviabilizando a competência humana para o cuidado uns dos outros. São, pois, um veneno, com propriedades para eliminar, sorrateiramente, a capacidade para enxergar e reconhecer todo o bem recebido. Ao invés de reconhecer gestos de bondade, ocupa-se com estratégias de boicotes, com silêncios maliciosos que representam ataques, para que a maldade saia vitoriosa.
Mesmo as mentes iluminadas, com discursos apreciáveis, podem estar contaminadas por ressentimentos e outros males, dedicando-se a revides, cultivando disputas. Um horizonte sombrio e amargo se configura, camuflando-se de razoabilidades e, consequentemente, prejudicando a abertura de novos ciclos. Cristaliza-se uma cegueira que não permite encontrar a via da reconciliação. E sem essa via, torna-se mais distante a consolidação da amizade social, que não pode ser construída simplesmente por palavras e frases de efeito. É sempre essencial se lembrar do que Jesus, na sua maestria, recomenda aos seus discípulos, no Sermão da Montanha: estando a caminho de se fazer uma oferta a Deus, é preciso lembrar se há algum senão no relacionamento com o semelhante. Se houver, deve-se deixar a oferta e, primeiramente, buscar se reconciliar com o irmão. Acolher o ensinamento de Jesus é reconhecer o valor da amizade social, dom a ser vivido por todos os seres humanos. Quem verdadeiramente aprende a lição do Mestre corrige rumos na construção das relações sociais, deixando-se guiar por uma luz que permite enxergar escolhas adequadas, fiéis ao princípio da fraternidade universal, de modo sensível, principalmente, às urgências dos mais pobres.
Mudanças profundas, radicais, sistêmicas e globais, muito necessárias, dependem da competência humana e espiritual para agir reconhecendo-se irmão e irmã uns dos outros. Um reconhecimento que é exigência da fé cristã, que ensina: todos têm a mesma dignidade, uma igualdade fundamental, conforme vem ensinando o magistério da Igreja Católica. Cada pessoa tem uma alma racional, é criada à imagem de Deus, partilhando a mesma natureza de toda a humanidade, remida por Cristo, tendo o seu mesmo destino. É preciso enfrentar a “síndrome de Caim”, que elimina vidas, contribuindo para disseminar, no mundo, agressões e ameaças de todo tipo. O Papa Francisco alerta para o risco destrutivo da globalização da indiferença, advertindo sobre a insensibilidade diante daqueles que sofrem. Esta situação tem se agravado em todos os ambientes e instituições. Para superá-la, é preciso um grande mutirão dedicado à amizade social. Isto significa buscar recuperar o sentido de corresponsabilidade de uns pelos outros.
Conclama-se ao cultivo do perdão, para se priorizar a fraternidade. Sem avanços na construção da amizade social não se avançará na edificação de uma civilização mais justa. O caminho da amizade social é indispensável para facilitar diálogos, derrubando muros erguidos pela inimizade. Constitui, pois, itinerário para a liberdade de cada pessoa e da própria humanidade. Um itinerário que, para ser trilhado, exige disponibilidade para tecer a reconciliação, exercitar o perdão – práticas essenciais à efetivação de um novo tempo, compromissos de quem, de fato, é agente da amizade social.
Agente da amizade social
A Quaresma é um caminho de conversão e purificação, possibilidade de fortalecer a interioridade humana, fragilizada pelas dificuldades cotidianas e pela realidade do pecado. O esforço para revestir o coração com tecido de qualidade, à altura de uma conduta cidadã e cristã, inclui a adoção de novos propósitos que alavanquem o bem comum e a felicidade de cada dia. Neste ano, o horizonte do caminho quaresmal está estrelado por um convite instigante: cada pessoa se torne agente da amizade social, cultivando relações humanas mais qualificadas. Um percurso que contempla enfrentar preconceitos, discriminações e desavenças – males que desfiguram a identidade do ser humano, marcada pela filiação de todos ao mesmo Pai, irmãos e irmãs uns dos outros. Trata-se de nobre propósito, caminho de santificação, com incidências transformadoras em níveis muito profundos. Sinal de esperança para vencer cenários de exclusões, perseguições e guerras – é como se o mundo vivesse a terceira guerra mundial, em pedaços, nas palavras do Papa Francisco.
Válida para todos, sem exceção, é a advertência quanto ao risco de se adotar, patologicamente, a “síndrome de Caim”. A narrativa do Livro do Gênesis, capítulo quarto, tem ápice na pergunta de Deus, em diálogo com Caim: ‘Onde está teu irmão?’ A resposta do assassino é o extremo da indiferença e da crueldade de um coração humano. Caim respondeu: ‘Não sei’. E completa com a insolência perversa de quem está enjaulado em si mesmo: ‘Acaso sou guarda do meu irmão?’ Uma afronta a Deus, o Pai de todos, que são irmãos e irmãs uns dos outros. Com suas atitudes, Caim agrada ao maligno, tornando-se seu servo na calculista eliminação do outro, de seu irmão, por orgulho, ciúmes e ressentimentos. O orgulho, o ciúme e o ressentimento constituem perigosíssimo risco com força para ampliar, diariamente, a inimizade entre as pessoas, inviabilizando a competência humana para o cuidado uns dos outros. São, pois, um veneno, com propriedades para eliminar, sorrateiramente, a capacidade para enxergar e reconhecer todo o bem recebido. Ao invés de reconhecer gestos de bondade, ocupa-se com estratégias de boicotes, com silêncios maliciosos que representam ataques, para que a maldade saia vitoriosa.
Mesmo as mentes iluminadas, com discursos apreciáveis, podem estar contaminadas por ressentimentos e outros males, dedicando-se a revides, cultivando disputas. Um horizonte sombrio e amargo se configura, camuflando-se de razoabilidades e, consequentemente, prejudicando a abertura de novos ciclos. Cristaliza-se uma cegueira que não permite encontrar a via da reconciliação. E sem essa via, torna-se mais distante a consolidação da amizade social, que não pode ser construída simplesmente por palavras e frases de efeito. É sempre essencial se lembrar do que Jesus, na sua maestria, recomenda aos seus discípulos, no Sermão da Montanha: estando a caminho de se fazer uma oferta a Deus, é preciso lembrar se há algum senão no relacionamento com o semelhante. Se houver, deve-se deixar a oferta e, primeiramente, buscar se reconciliar com o irmão. Acolher o ensinamento de Jesus é reconhecer o valor da amizade social, dom a ser vivido por todos os seres humanos. Quem verdadeiramente aprende a lição do Mestre corrige rumos na construção das relações sociais, deixando-se guiar por uma luz que permite enxergar escolhas adequadas, fiéis ao princípio da fraternidade universal, de modo sensível, principalmente, às urgências dos mais pobres.
Mudanças profundas, radicais, sistêmicas e globais, muito necessárias, dependem da competência humana e espiritual para agir reconhecendo-se irmão e irmã uns dos outros. Um reconhecimento que é exigência da fé cristã, que ensina: todos têm a mesma dignidade, uma igualdade fundamental, conforme vem ensinando o magistério da Igreja Católica. Cada pessoa tem uma alma racional, é criada à imagem de Deus, partilhando a mesma natureza de toda a humanidade, remida por Cristo, tendo o seu mesmo destino. É preciso enfrentar a “síndrome de Caim”, que elimina vidas, contribuindo para disseminar, no mundo, agressões e ameaças de todo tipo. O Papa Francisco alerta para o risco destrutivo da globalização da indiferença, advertindo sobre a insensibilidade diante daqueles que sofrem. Esta situação tem se agravado em todos os ambientes e instituições. Para superá-la, é preciso um grande mutirão dedicado à amizade social. Isto significa buscar recuperar o sentido de corresponsabilidade de uns pelos outros.
Conclama-se ao cultivo do perdão, para se priorizar a fraternidade. Sem avanços na construção da amizade social não se avançará na edificação de uma civilização mais justa. O caminho da amizade social é indispensável para facilitar diálogos, derrubando muros erguidos pela inimizade. Constitui, pois, itinerário para a liberdade de cada pessoa e da própria humanidade. Um itinerário que, para ser trilhado, exige disponibilidade para tecer a reconciliação, exercitar o perdão – práticas essenciais à efetivação de um novo tempo, compromissos de quem, de fato, é agente da amizade social.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)
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