Essa evocação, presente na tradição bíblica, é uma convocação na vida do povo de Israel e torna-se referência a um princípio vital para enfrentar o processo destrutivo que se abate sobre a humanidade na atual virada antropológica, responsável por mudar cenários em todo o mundo. Trata-se de um chamado para que o povo se aproxime mais de Deus e, assim, seja reconfigurada a vida em seus diferentes aspectos – culturais, políticos, religiosos e ambientais. Sabe-se que as dinâmicas das grandes transformações antropológico-culturais, como a que ocorre na contemporaneidade, desafiam as sociedades, incidem sobre identidades institucionais, abalam convicções. Nesse contexto, corre-se o risco de se negociar o inegociável, de se adotar práticas que desorientam e levam à perda de rumos, obscurecendo metas importantes para a salvaguarda do bem comum, da verdade, do amor e, consequentemente, da justiça. O desafio é continuar, como um caçador, a buscar a verdade nos seus princípios, com humildade e esperança.
Buscar permanentemente a verdade é desafio constante, mas não se pode apegar à ilusão de ser possuidor dela. Considerar-se “dono da verdade” é postura que gera equívocos, fundamentalismos e polarizações. “Ouve, Israel” é, pois, referência que ensina: só um caminho de profunda escuta permitirá não perder a direção da verdade e do amor. Seja, assim, assumido o desafio humano e existencial de exercitar a competência para escutar. A escuta de Deus e de si mesmo alarga os espaços interiores para que os outros sejam escutados – particularmente, gera sensibilidade para reconhecer os clamores dos pobres e sofredores. De modo contrário, o comprometimento da capacidade para escutar é desastroso, pois alimenta a dureza de coração, obscurece até a razão, ou a direciona para gestos de indiferença, ameaçando a paz, por prejudicar a justiça e o inegociável princípio ético-moral de salvaguardar sempre o bem comum.
O exercício da escuta, no horizonte da convocação feita por Deus ao seu povo – “Ouve, Israel” -, constitui caminho único para encontrar sabedoria e recompor o tecido sociopolítico, para se conquistar o equilíbrio, a solidariedade e o sentido de viver. É muito fácil detectar os efeitos nocivos e demolidores advindos da incompetência para o exercício humano de escutar. Quem não escuta fala sempre, muito, de modo visivelmente desconectado da adequada interpretação da realidade. Produz, assim, resultados que pesam, atrasam processos e impedem o alcance de novas respostas exigidas em cada etapa da história. “Ouve, Israel” é princípio ético-pedagógico, convocação, determinação, correção e advertência.
O “rolo compressor” da viragem antropológico-cultural em curso, que causa angústias, multiplica depressões, revela destemperos humanos e exige novo humanismo só pode ser adequadamente enfrentado pelo exercício qualificador da capacidade para escutar. Caso contrário, as percepções serão equivocadas ou superficiais e não serão encontradas soluções até para os problemas mais simples. Comprometido estará o sentimento indispensável de que viver é dom precioso e vale lutar pelo bem, compromisso irrenunciável – até quando são exigidos sacrifícios e renúncias, na contramão da mesquinhez suicida que contamina a atualidade. “Ouve, Israel”. Todos acolham essa convocação para quebrar os terríveis e danificadores grilhões da autorreferencialidade, mal que cega a razão e os corações, inviabiliza percepções fundamentais, alimenta o carreirismo, o doentio apego ao dinheiro, a dominação pela dinâmica da disputa fratricida, e o mais grave: a perda da serenidade e da alegria de viver.
“Ouve, Israel” é a prioritária indicação de um exercício diário a ser feito por todos, para uma capacitação espiritual e humanística. Sem o exercício da escuta, os erros se multiplicarão, a fonte da compaixão secará, a teimosia será o leme e a mesquinhez, os trilhos. Desenvolver a aptidão para escuta é fundamental na recuperação do esgarçado tecido sociocultural e religioso da contemporaneidade, de modo a evitar o caos, a superar os desequilíbrios ambientais, os descompassos políticos, os fundamentalismos e conservadorismos religiosos que levam à humanidade sem humanismo, à religiosidade sem Deus, ao mundo sem vida, a homens e mulheres sem alma.
Fale menos, ouça primeiro. Em busca de qualificar a capacidade para escutar, vale acolher, dentre tantas e preciosas indicações, o conselho de Santo Ambrósio, bispo no século quarto, explicitando o alcance da convocação “Ouve, Israel”: “Vossa palavra, Senhor, é estável como o céu (Sl 118,89). Vês que ela deve permanecer também em ti, pelo fato de permanecer estável no céu. Guarda, pois, a palavra de Deus e conserva-a em teu coração, de tal modo que não a esqueças. A meditação da lei nos dá a possibilidade de suportar serenamente os períodos de sofrimento, de humilhação e de qualquer adversidade, de modo a não sermos oprimidos nem pelo excesso de tribulação nem pela falta de coragem. Em uma palavra, o Senhor não quer que sejamos abatidos pelo sofrimento até o desespero, mas até a correção.” Ecoe nos corações de aprendizes e peregrinos: “Ouve, Israel”!
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte (MG)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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