No passado era muito comum ouvir elogios destinados às pessoas reconhecidamente civilizadas, qualidade que define homens e mulheres comprometidos com a conduta ilibada e honesta, dedicados ao exercício da cidadania de forma admirável. Importante sublinhar: ser civilizado não é apenas dominar o conjunto de formalidades e etiquetas exigidas em certos ambientes. Trata-se de orientar a própria conduta a partir de parâmetros humanitários cultivados na consciência humana. E é exatamente esse sentido de civilidade que está faltando na sociedade contemporânea. Assim, a cidadania fica comprometida, pois há carência de um sólido embasamento antropológico para o exercício da civilidade. Falta clareza a respeito da origem, destino e missão de todo ser humano, da responsabilidade de cada um na construção de uma sociedade justa e fraterna.
Os acelerados avanços tecnológicos não são acompanhados pelo cultivo da civilidade. As muitas oportunidades para intercâmbios, partilhas de informações e a beleza de poder se comunicar com pessoas diferentes, em todo o mundo, coabitam com equivocados modos de agir do ser humano, que se mostra descomprometido com a tarefa de compor e integrar equipes, de formar laços para trilhar um itinerário em busca do bem comum.
A perda de civilidade alimenta a delinquência que toma conta das muitas dinâmicas da sociedade contemporânea, manifestando-se de diferentes maneiras e intensidades. Contempla a loucura dos atiradores que avançam sobre multidões, os atentados terroristas, a incontrolável violência dos contextos urbanos e, também, os diferentes “assaltos” ao erário, praticados por quem busca a satisfação doentia de aumentar o patrimônio com aquilo que pertence ao povo. Um tipo de conduta que torna ainda mais distante o sonho de alcançar a civilização do amor. Aspiração que, para se tornar realidade, depende da eficácia de processos educativos fundamentados em princípios antropológicos capazes de possibilitar o reconhecimento do verdadeiro sentido da vida no contexto contemporâneo.
Se a vida perde sentido, a liberdade é exercida para alimentar delinquências. Prevalece o “vale tudo”, com as conveniências egoístas que desconsideram a existência das outras pessoas, particularmente dos mais pobres, indefesos e inocentes. Nesse cenário, perde-se a noção de pátria e de pertencimento. Muitos passam a considerar retrógrados os princípios e valores que sustentam a civilidade. Acham-se no direito de passar por cima de tudo para alcançar, mesquinhamente, certos interesses. Uma postura que gera incompetência para a vida em coletividade, perdendo-se muitas oportunidades para a qualificação da cidadania. A própria liberdade torna-se ameaçada, pois no “vale tudo”, a premissa do respeito mútuo é desconsiderada. Perde-se a segurança de ir e vir, a capacidade para se relacionar harmonicamente com o semelhante e, particularmente, o compromisso de dedicar-se à solidariedade.
Esse fenômeno preocupante da perda do sentido de civilidade gera ainda a incapacidade para ouvir críticas, ou mesmo elaborá-las com o objetivo de promover mudanças que signifiquem aprimoramento. Aos poucos, convive-se com a superficialidade de uma sociedade que ocupa território de riquezas extraordinárias, mas não sabe o que fazer para promover o bem de todos. A incivilidade na sociedade brasileira atrasa novos passos, a saída das crises. Mata alegrias e esperanças.
Por isso, é preciso recuperar a civilidade aprendida nos lares e cultivada nas muitas escolas da vida. Sem civilidade, não há valorização do amor como norma suprema na vida social, nos âmbitos político, econômico e cultural e nem os gestos que levam em consideração o respeito às diferenças, às pessoas, aos momentos e aos ritos. O esquecimento da civilidade permite as discriminações e a confirmação de elitismos que envenenam a sociedade. É preciso resgatar a civilidade, seu conjunto de normas e práticas, que contribui para modular consciências, o caminho para qualificar as relações humanas, viver como autodoação em benefício da sociedade, autênticos servidores e cidadãos comprometidos. É preciso trabalhar muito, dos pequenos gestos à nobreza de grandes atos, para se resgatar a civilidade.
Autor: Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
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